“40% da memória de SP está destruída” – O Estado de S.Paulo

 

Dos 1.813 imóveis tombados ou em análise na capital paulista, 740 têm problemas; especialista critica descaso

Rodrigo Brancatelli e Vitor Hugo Brandalise

Da colônia ao caos, a memória de São Paulo se revela em pedaços. Restos da vila feita de taipa de pilão por ali, migalhas da cidade neocolonial acolá, lembranças modernistas espalhadas em outros cantos. São pequenos mosaicos da metrópole que se reinventou, se destruiu e se reconstruiu inúmeras vezes ao longo dos últimos 455 anos, sem se importar muito com o urbanismo ou mesmo com a importância histórica da própria arquitetura.

O cenário de degradação está longe de ser uma realidade distante. Mesmo esses poucos pedaços da memória paulistana, hoje teoricamente preservados pelo governo municipal, correm o risco de se tornarem ainda menores. Um levantamento inédito realizado pelo Estado mostra que 40% dos 1.813 imóveis tombados ou em processo de tombamento de toda a capital estão abandonados, destruídos ou totalmente desconfigurados. No centro, por exemplo, 429 dos 1.272 imóveis históricos da região fazem parte dessa estatística. E isso está longe de ser o pior caso de São Paulo – na zona norte, 79% do patrimônio está abandonado ou destruído, enquanto na zona leste esse índice chega a 94%.

São casos flagrantes de degradação, de especulação imobiliária ou de puro e simples desconhecimento. “Tombado? Como assim? Aqui na minha casa está tudo em ordem, não tem isso de tombado não”, explica, sem ao menos saber o significado da palavra, a dona de casa Fátima de Assunção, moradora de uma das 17 residências tombadas no Jardim Matarazzo, na zona leste, que foram totalmente reformadas e remembradas nos últimos anos e pouco lembram a vila operária erguida no século 19. “Na verdade, isso aqui está tombando, caindo mesmo”, diz o caseiro de um antigo hospital abandonado na Penha, zona norte. O imóvel tombado pela Prefeitura, com exatos 226 cômodos, tem infiltrações por todos os cantos e pedaços do teto correm o risco de desabar. “Qualquer barulhinho dá um medo tremendo.”

Para montar esse inventário do patrimônio municipal, a reportagem analisou ao longo de dois meses todas as 280 resoluções publicadas nos últimos 20 anos pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo (Conpresp), órgão criado pela Secretaria de Cultura para deliberar sobre a proteção dos bens culturais do Município. O primeiro tombamento foi realizado por meio do Decreto 26.818, de setembro de 1988, que protege os imóveis localizados no Pátio do Colégio, enquanto o último documento foi assinado no dia 16 de dezembro, abrindo o processo de tombamento de um imóvel na Vila Andrade, zona sul.

No total, exatos 1.813 imóveis estão tombados ou passam por processo de tombamento hoje em São Paulo, o que significa que eles têm valor histórico ou cultural para a capital e não podem ser alterados sem autorização expressa do Conpresp e da Prefeitura. Apesar do tombamento, no entanto, eles estão longe de estarem protegidos. Em visitas aos locais, se pode perceber que 740 desses imóveis estão abandonados, completamente destruídos ou totalmente desconfigurados (reformados sem levar em conta o desenho original da construção), constituindo um crime contra a memória pública.

“São Paulo sempre teve uma característica vanguardista, por ser um local onde novas tendências se manifestavam primeiro. Por isso, é uma vitrine do patrimônio histórico nacional”, diz o professor Benedito Lima de Toledo, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e membro honorário do Comité Internacional d’Histoire de l’Art. “O descaso que pode ser percebido num passeio pela cidade mostra que tanto sociedade quanto poder público têm muito o que refletir sobre a importância de sua memória.”

Copyright © Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

Compartilhe este artigo