Organizações da sociedade civil questionam constitucionalidade de Medida Provisória

Em carta aberta, organizações – entre as quais o Programa Cidades Sustentáveis e a Rede Nossa São Paulo – alertam sobre riscos à democracia 

Mais de 50 organizações da sociedade civil – nacionais e internacionais – atuantes no Brasil divulgaram na manhã desta quarta-feira (9/1) carta aberta endereçada ao general Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República.

O documento manifesta profunda preocupação em relação à Medida Provisória (MP) 870/2019, que atribui ao Governo Federal responsabilidades de coordenação e monitoramento do trabalho das organizações sociais em todo o território nacional.

Assinada pelo presidente Jair Bolsonaro em 1º de janeiro, a MP foi recebida com enorme inquietação por este grupo de relevo da sociedade civil brasileira em razão de seu caráter antidemocrático e por julgarem se tratar de uma medida inconstitucional.

Na carta aberta, as organizações ressaltam a importância de uma sociedade civil livre para exercer seu papel de forma autônoma e reafirmam que qualquer interferência estatal no funcionamento das ONGs é definitivamente vedada pela Constituição Federal.

Em defesa da democracia e do respeito à Constituição Brasileira, o grupo solicita audiência junto ao ministro responsável, Santos Cruz, com o intuito de que um espaço de diálogo sobre o tema se estabeleça e para que as medidas cabíveis sejam tomadas para garantir a constitucionalidade da MP.

O grupo segue em articulação para se reunir também com Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, e Eunício Oliveira, presidente do Senado Federal, a fim de aprofundar o debate sobre o tema junto a parlamentares, dado o papel determinante do Congresso Nacional para a tramitação da MP.

As organizações buscam ainda interlocução com a Procuradoria-Geral da República para que a conformidade constitucional da medida seja devidamente avaliada e tratada pelas instituições competentes.

Leia a íntegra da carta e confira todos os signatários

Carta ao ministro da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz

Por uma sociedade civil livre e autônoma

Exmo. sr. ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República
Carlos Alberto dos Santos Cruz

Em mãos

Ref.: Medida Provisória nº 870/2019

C/C:

Exmo. sr. presidente da Câmara dos Deputados
Rodrigo Felinto Ibarra Epitácio Maia

Exmo. sr. presidente do Senado Federal
Eunício Lopes de Oliveira

Exma. sra. procuradora geral da República
Raquel Elias Ferreira Dodge

Ilmo. sr. secretário nacional de Articulação Social
Henrique Villa da Costa Ferreira

Excelentíssimo senhor ministro,

Foi com profunda preocupação que as organizações da sociedade civil abaixo assinadas receberam a publicação de Medida Provisória nº 870/2019, que em seu artigo 5º, inciso II, atribuiu à Secretaria da Governo a responsabilidade de “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e as ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional”.

A existência de uma sociedade civil plural, atuante e autônoma é essencial para a qualidade da democracia. Não à toa, nossa Constituição assegura liberdades de associação, expressão e manifestação e veda qualquer interferência estatal no funcionamento das associações. Garantir essas liberdades previstas pela CF é o que permite a organização dos mais variados setores da sociedade, assim como a defesa de direitos e de interesses legítimos numa democracia pluralista. Preservar a autonomia da atuação das organizações não governamentais é, portanto, fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade aberta e efetivamente democrática.

Otimizar recursos e coordenar ações para aprimorar políticas e serviços públicos é decerto uma iniciativa relevante para o governo. A implementação de medidas com esses fins, no entanto, não pode compreender a interferência na atuação das organizações da sociedade civil, sob o risco de afrontar princípios constitucionais basilares à democracia. Para isso, já existe o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil. E quando enunciados estabelecidos por intermédio de uma medida provisória entra em choque com dispositivos da Constituição é imprescindível que sejam respeitados os de maior hierarquia, nesse caso os preceitos que vedam a interferência direta do governo na livre organização da sociedade civil.

Como se sabe, as OSCs são condicionadas apenas à licitude de seus fins e legalidade de suas condutas, como também determinado pela Constituição, podendo ser fiscalizadas e eventualmente sancionadas se desrespeitarem a lei. Para isso há Ministério Público, Receita Federal, Tribunais de Contas e, por último, a Justiça, única esfera do Estado que pode determinar a suspensão de atividades ou mesmo o fechamento de uma organização da sociedade civil, após o cumprimento do devido processo legal.

Muito além de complementar as ações do governo, a sociedade civil organizada cumpre o papel de locus da cidadania, é promotora de pautas e debates essenciais à construção do país e alimenta de forma efetiva a vida democrática ao redor do território nacional, não podendo ser tutelada pelo Estado. Ademais, as organizações da sociedade civil atuam de maneira próxima à população na representação de direitos e interesses de diversos segmentos, podendo através dessas atividades, colaborar para construção de políticas públicas mais eficazes e eficientes para atender às demandas da população. Valorizar e respeitar os princípios de sua atuação é prezar pelo bom funcionamento do nosso regime democrático.

Em sintonia com entrevista concedida por vossa Excelência à BBC, publicada no último dia 6 de janeiro, na qual Vossa Excelência reafirma que sua secretaria está de portas abertas e almeja o diálogo com organizações da sociedade civil, vimos por meio desta carta solicitar uma audiência com Vossa Excelência para abordar medidas cabíveis para que a MP seja retificada a fim de que esteja em conformidade com a nossa Constituição Cidadã.

Com saudações cordiais e plenamente dispostos ao diálogo,

Brasília, 09 de janeiro de 2019

As organizações abaixo-assinadas:

Ação Educativa
Agência de Notícias de Direitos Animais – ANDA
Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras – AMNB
Associação Alternativa Terrazul
Associação de Defesa do Meio Ambiente de Araucária – AMAR
Associação de Proteção ao Meio Ambiente de Cianorte – APROMAC
Associação de Saúde Ambiental – TOXISPHERA
Atados
Casa Fluminense
Centro de Debate de Políticas Públicas – CDPP
Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária – CENPEC
Centro de Liderança Pública – CLP
Coletivo Advogadas Negras Esperança Garcia
Conectas Direitos Humanos
Delibera Brasil
Departamento Instersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIEESE
Engajamundo
Fórum Brasileiro de ONGs pelo Meio Ambiente e o Desenvolvimento – FBOMS
Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Fórum do Amanhã
Fórum Permanente Pela Igualdade Racial – FOPIR
Frente Favela Brasil
Fundação Avina
Fundação Tide Setubal
Geledés – Instituto da Mulher Negra
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC
Instituto Clima e Sociedade – ICS
Instituto Construção
Instituto de Estudos da Religião – ISER
Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social
Instituto Igarapé
Instituto Não Aceito Corrupção
Instituto Socioambiental – ISA
Instituto Sou da Paz
Instituto Update
Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD
Laboratório de Estudos das Transformações do Direito Urbanístico Brasileiro
Movimento Acredito
Movimento Agora
Movimento Boa Praça
Movimento Brasil 21
Movimento Político pela Unidade – MPPU
Nossas
Oxfam Brasil
Politize
Programa Cidades Sustentáveis
Projeto Brasil 2030
Projeto Saúde e Alegria
Rede Conhecimento Social
Rede Nossa São Paulo
Redes da Maré
TETO
Transparência Brasil

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