SP tem quase 2 professores agredidos ao dia; ataque vai de soco a cadeirada

ANGELA PINHO E DANIEL MARIANI – FOLHA DE S. PAULO

A cada dia, em média, quase dois professores são agredidos em seus locais de trabalho no Estado de São Paulo, mostram dados de registros policiais obtidos pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação.

O número leva em conta as 178 queixas de educadores em delegacias no primeiro semestre deste ano em datas do calendário escolar (dias úteis do período de fevereiro a junho).

Elas se referem a ocorrências de "vias de fato" (37%), como um empurrão sem maiores consequências, e ao crime de lesão corporal (63%). Aconteceram em creches, escolas e universidades, tanto públicas como particulares.

Há educadores atingidos com lixeiras, carteiras escolares, socos, chutes e pontapés. Em ao menos um de cada quatro casos, um aluno foi apontado entre os agressores -a maioria dos registros não identifica os responsáveis.

O número real de ocorrências é provavelmente ainda maior, pois, em um terço dos casos, a profissão da vítima não é identificada no boletim. Sabe-se ainda que, em estatísticas de violência, é comum haver subnotificação, pois parte das pessoas não chega a procurar a polícia.

A violência contra professores ganhou repercussão nacional nas últimas semanas com a imagem de Márcia Friggi, de Indaial (SC), fotografada com sangue no rosto após levar um soco de um aluno. A cena chamou a atenção para casos que se repetem todos os dias em todos os Estados.

Em 2015, 23 mil professores do país relataram ter sido ameaçados por algum estudante da escola, segundo questionários da Prova Brasil, exame aplicado pelo Ministério da Educação.

Para especialistas, dois fatores se combinam para explicar as agressões. De um lado, está a violência que existe na própria sociedade. "Os conflitos transpassam o muro da escola e continuam ali", afirma Renato Alves, pesquisador do NEV (Núcleo de Estudos da Violência) da USP.

"Crianças que vivem em ambientes violentos tendem a se relacionar de maneira pior com seus colegas e professores", completa Priscilla de Albuquerque Tavares, da FGV.

Por outro lado, a desconexão entre o aluno e a escola agrava o problema, diz Bernard Charlot, que conduziu pesquisas sobre o tema para o governo francês e hoje é professor visitante na Universidade Federal de Sergipe. "Um aluno que passa cinco dias na escola desinteressado, sem ver sentido no que aprende, vira foco de tensão permanente. Com qualquer faísca, pode gerar incêndio."

SOCOS E PONTAPÉS

"Quem é que sai para trabalhar pensando em tomar um soco na cara?" A pergunta não sai da cabeça do professor Márcio Gomes, 40, há mais de um mês. Na primeira quinta-feira de agosto, dia 3, ele sentiu um clima estranho já durante a aula, numa escola estadual da cidade de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo.

Ensinava equação de segundo grau quando um aluno que ele nunca tinha visto entrou na sala, pegou o celular de outro estudante e fez barulho no corredor ao sair. Advertido por uma funcionária, gritou palavrões e disse que iria dar um soco nela.

Ao ouvir a ameaça, Márcio procurou a colega para alertá-la. Não imaginava que era ele quem iria, involuntariamente, entrar na estatística de professores atacados em seu local de trabalho.

Naquele dia, menos de três semanas antes de a professora Márcia Friggi ser atacada em Santa Catarina, Márcio foi surpreendido no pátio pelo aluno desconhecido que entrara no meio da sua aula.

"Ele estava sentado em um grupo", lembra. "Com um olhar fixo de raiva, levantou-se, veio até mim e começou a me dar socos e pontapés. Andei uns quatro metros para trás até escapar." O apagador que Márcio segurava quebrou. As pancadas atingiram sua cabeça e sua perna.

O motivo do ataque o professor não sabe bem até hoje. Desconfia que o estudante, de 16 anos, possa ter ficado revoltado quando ele alertou a outra funcionária sobre a ameaça no corredor.

DESPROPORÇÃO

A perplexidade dos professores agredidos ao lembrar o início do episódio de violência é comum em seus relatos. Por mais injustificável que seja o ato de violência em si, chama a atenção a desproporcionalidade entre a agressão e a desavença que a originou.

Maria (nome fictício), 39, foi parar na UTI após um aluno reclamar que recebera a nota errada numa escola da zona leste de São Paulo.

Professor de artes, Jeferson Siqueira, 49, foi golpeado com uma cadeira após repreender um jovem que havia batido o caderno com força na mesa num colégio na zona norte. Machucou antebraço, cotovelo e mão. Teve o dedo mindinho quebrado.

Luciana Rocha Frias, 41, foi xingada aos gritos pela mãe de uma criança da rede municipal após um mal entendido sobre o tamanho do uniforme. Funcionários se colocaram na frente da professora para impedir a agressão.

O fenômeno do "motivo fútil" já foi identificado em pesquisas sobre violência escolar de outros países, diz Bernard Charlot, professor aposentado da Universidade Paris 8 que conduziu estudos sobre o tema para o governo francês há duas décadas.

"Quando se analisam os casos, muitas vezes não se entende como uma coisa tão pequena gerou uma reação tão forte", diz ele, que hoje atua na Universidade Federal de Sergipe. "Mas, em geral, já havia uma questão maior antes do episódio de violência -não necessariamente ligada ao professor."

No caso de Jeferson, por exemplo, o colégio tinha um problema com drogas. Dias antes, ele e o aluno que depois o agrediu haviam tido uma discussão. "Ele traficava dentro da escola e sentava perto da porta para cobrar as pessoas no corredor. Mandei ele fechar a porta, e ele ficou nervoso", afirma.

Muitas vezes a agressão na escola também ocorre após uma sucessão de pequenos atos de incivilidade, de acordo com Renato Alves, pesquisador do NEV (Núcleo de Estudos da Violência) da USP e autor de estudos sobre o tema.

Se a escola não tomar uma atitude que deixe claro que aquilo não pode ser feito, um xingamento e um bullying, por exemplo, podem redundar em um ataque físico. É importante notar, diz, que muitas vezes o ato de violência é só a ponta do iceberg de uma série de frustrações que explodem dentro da escola.

FRUSTRAÇÃO

Professor em Mogi das Cruzes, Álvaro Dias lista alguns acontecimentos recentes nas escolas da cidade, para ele sintomas da frustração com uma mesma gestão educacional fracassada: alunos jogaram verniz e urinaram em uma caixa-d'água; fizeram corredor polonês para agredir colegas; queimaram o carro de uma diretora; agrediram mais de uma professora.

Fábia Morente, 41, foi uma delas. Com 20 anos de profissão, a docente entrou mais de uma vez na estatística.

Os episódios começaram há alguns meses, após ela avisar uma colega que alunos haviam quebrado uma vidraça do colégio. Pouco depois, ela chegou em seu carro e descobriu que tinham descarregado no veículo todo o conteúdo de um extintor.

Em abril deste ano, veio a situação mais grave, no meio de uma aula do 9º ano. "A porta da sala estava aberta. Eu só vi uma lixeira voando, e os alunos gritando: 'não!'." Não deu tempo de desviar. A lixeira -cheia- bateu na cabeça e no ombro de Fábia.

Na última quarta-feira (13), ela decidiu voltar à delegacia, agora por causa de outro ataque. Dessa vez, a porta da sala estava fechada. Um aluno colocou uma bombinha no buraco da porta, e estilhaços atingiram seu ombro. "Recebemos uma cobrança enorme, mas não temos estrutura para trabalhar", reclama ela.

Agressões não são o único problema enfrentado pelas professoras mulheres. Luciana (nome fictício) registrou queixas de outra ordem. Ela dá aulas de educação física em uma escola pública da periferia de Campinas (interior de São Paulo) e prefere não ser identificada.

Conta que, no início do ano, alunos começaram a assediá-la. Ela passou de sala em sala e pediu respeito. Um mês depois, viu seu carro inteiro riscado de "canetão", com palavras como "gostosa" e desenhos obscenos. Até hoje não se sabe quem foi o autor -o que significa que ninguém foi punido.

Educadora da rede municipal, Silvana Ferreira, 32, foi alvo de outro crime, também dentro da escola, uma unidade da rede municipal em Cidade Tiradentes (zona leste). Bandidos entraram no fim do dia, trancaram os professores em uma sala e levaram todos os pertences. "A gente até espera ser abordado na rua, mas não no seu local de trabalho", afirma.

CONSEQUÊNCIAS

Ainda que graves, poucos casos se comparam ao de Maria (nome fictício), que pediu para não ser identificada. "Rodo nela", escreveu em uma rede social um aluno de 16 anos após dar uma rasteira nela, em uma escola na zona leste de São Paulo. O ataque aconteceu após uma discussão sobre o registro da nota do estudante.

Pega de surpresa pela rasteira, Maria caiu, bateu a cabeça e ficou mais de cinco minutos desacordada. No chão da escola estadual na zona leste de São Paulo, teve convulsões e ficou três dias em observação na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) de um hospital, com a costela trincada.

Hoje, está bem de saúde. Mas tem medo e, com medo, não é mais a mesma na sala de aula, diz. "A minha matéria [matemática] não é a do professor mais bonzinho. A gente precisa de atenção, disciplina, que os alunos façam o exercício", afirma. "Mas não consigo mais ter a mesma autoridade. Se um aluno falasse que não ia fazer algo, antes eu insistia. Agora eu só respondo: 'tá' bom."

Seu caso, ocorrido no fim do ano passado, causou comoção na rede estadual. Professores de diversos colégios foram trabalhar vestidos de preto. Alunos fizeram protestos e homenagens à professora. Em um dos cartazes, lia-se: "professores desmotivados, alunos prejudicados".

A reação revela duas características da violência escolar. A primeira é que, ao contrário do que podem dar a entender números alarmantes, os atos são praticados e tolerados por uma minoria. "Os casos que ocorrem são muito graves, mas não significa que a escola virou um lugar onde predominam o medo e os ataques", diz Alves, do NEV/USP.

A segunda característica é que, se os agressores são minoria, as consequências de seus atos atingem toda a escola. Aulas são interrompidas, profissionais adoecem e pedem licença, e alunos ficam sem professores.

Atacada pela mãe da aluna, Luciana Rocha, 41, ficou dois anos afastada após o episódio, por motivos de saúde. "Não consigo mais entrar na sala de aula", diz.

Ela hoje exerce funções administrativas, assim como Jeferson, que foi atacado com a cadeira em 2015. Desde que foi golpeado, ele toma medicamentos contra depressão e síndrome do pânico. Evita pegar ônibus na hora do almoço para não encontrar outros estudantes no transporte. Talvez até volte a lecionar, mas não tem certeza.

Agredido há pouco mais de um mês em Bragança Paulista, Márcio voltou à sala de aula, mas em outra escola. Dessa vez, conta, foi ele que pediu desculpas aos estudantes -por não conseguir "se segurar" na sala. "Chorei por quase um minuto e meio na frente deles", afirma.

SOLUÇÕES

Apontados como fatores que influenciam a violência escolar, os problemas sociais e de segurança pública não se resolvem simplesmente por iniciativa das escolas. Na tentativa de uma solução interna, escolas de São Paulo têm apostado em ações de mediação de conflito.

Na rede estadual, desde 2010, professores têm sido treinados para atuar em casos de ofensas, ameaças e agressões, inclusive com ações preventivas. A atuação desses profissionais tinha melhorado a situação da violência, diz Maria Izabel Noronha, dirigente da Apeoesp (sindicato dos professores da rede estadual). Segundo ela, porém, parte do quadro desses profissionais foi cortada pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB).

Chefe de gabinete da secretaria de Educação, Wilson Levy rebate a informação e afirma que houve uma junção desse programa com outro, de escola da família. Segundo ele, a pasta anunciará em breve um programa para aumentar o número de professores mediadores na rede, com foco nas regiões com maior vulnerabilidade social do Estado. "Mas é preciso lembrar que o que acontece na escola é um sintoma", afirma. "A violência está na sociedade."

Matéria publicada na Folha de S. Paulo.

 

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