Todos os dias a população de São Paulo caminha sobre três mil quilômetros de cursos de água. Infelizmente são rios invisíveis, que foram canalizados e enterrados vivos sob nossos pés.
Pavimentar as cidades em prol do tão aclamado crescimento econômico foi uma decisão coletiva tomada no passado. Era uma visão do que se costumava chamar de desenvolvimento. Muitas décadas depois, sabemos hoje que um erro foi cometido. A construção de ruas, avenidas e prédios provocou o desaparecimento dos rios de São Paulo.
As crianças paulistanas não têm a mínima ideia do que é soltar um barco de papel num córrego, sentir a água fria do riacho nos pés descalços ou fazer um piquenique ao lado da nascente do rio. Os tempos são outros e nossos ouvidos não estão mais sequer acostumados a ouvir o barulho da água batendo nas pedras e seguindo seu curso.
Por um acaso daqueles que só o destino consegue criar, o geógrafo Luiz de Campos Júnior e o arquiteto José Roberto Bueno (na foto acima) foram apresentados por um amigo em comum em São Paulo e juntos decidiram mostrar aos paulistanos que não é tarde demais. Ainda é possível trazer à tona os rios paulistanos e transformar a cidade num lugar mais humano e tolerante para seus habitantes.
No ano passado, os dois foram escolhidos para integrar a reportagem Pessoas Incríveis, da edição especial de final de ano da revista Vida Simples Verde.
Em entrevista ao Parceiros do Planeta, Bueno e Campos Júnior falam sobre as expedições do Rios e Ruas para redescobrir os rios de São Paulo e revelam como podemos nos reconectar com a natureza e transformar a cidade.
Como surgiu o Rios e Ruas?
Campos Jr. – Estudo o tema dos rios invísiveis na cidade de São Paulo desde a época da faculdade e nunca mais larguei desta história. Como era professor de geografia, trabalhei muito este assunto com alunos e na formação de professores, mas sempre no meio acadêmico. Em 2010 um amigo comum me apresentou ao Bueno quando tomávamos um café na Vila Madalena e o Rios e Ruas nasceu deste encontro.
Bueno – Na época em que conheci o Luiz estava pensando em formar uma jornada de aprendizagem vivencial com diversos mestres apaixonados por assuntos, que pudesserm gerar uma experiência para as pessoas. Mas algo prático. Quando o Luiz falou que São Paulo tinha uma quantidade enorme de água, fiquei muito curioso não só pela informação, mas como poder experimentar isso. Fizemos então um primeiro passeio perto da minha casa para tentar encontrar água. Acabamos descobrindo que eu morava a 150 metros de uma nascente de rio. Foi uma experiência muito forte e impactante.
Como são as expedições em busca dos rios invisíveis?
Bueno – Queríamos reproduzir a nossa primeira experiência. Um roteiro, com um pouco de bate papo, uma conversa sobre todo o conceito da hidrografia de São Paulo. Informação mais experiência.
Campos Jr. – Fazemos expedições em que ajudamos as pessoas a abrir a percepção para uma realidade que está encoberta em São Paulo. Uma vez que elas tenham esta percepção ativada, conseguem reconhecer isto em todos os lugares da cidade.
Quem são as pessoas que exploram os rios da cidade?
Campos Jr. – A ideia toda do Rios e Ruas foi sair do ambiente escolar, queremos ir para as ruas porque isso não é uma coisa que deva ficar fechada nas universidades, nas escolas. Isso tem que atingir o cidadão comum. Cada vez mais o Rios e Ruas começa a ter interfaces com diferentes tipos de iniciativas. Já fizemos expedições com grupos de ciclistas, pessoal das hortas urbanas. Na verdade estamos ocupando o espaço público, nos preocupando com ele e propondo novas possibilidades para a cidade.
Bueno – O que nos interessa também é a conversa, o olho no olho, a interação entre as pessoas. Durante as expedições as pessoas trazem muitas histórias, as experiências próprias, olhares diferentes sobre o tema.
Qual a duração das expedições?
Campos Jr. – Depende de cada passeio. Um dos mais recentes que realizamos para uma empresa de consultoria ambiental durou cerca de três horas e meia. Fizemos o percurso do rio Anhangabaú da nascente até o centro de São Paulo. Começamos com uma oficina no vão da MASP com um grande mapa da hidrografia de São Paulo, que é um grande quebra-cabeça de nove metros quadrados. As pessoas montam as peças e depois interferem em cima do mapa. Quando elas vêm aquilo, nem acreditam que representa a hidrografia da cidade. Dizem que não é possível ter tanto rio assim em São Paulo. Mas logo começam a identificar os rios perto das casas delas, desenhar na cabeça o trajeto deles. É uma atividade vivencial e transformadora para o cidadão.
Os passeios são guiados pelos mapas?
Campos Jr. – Os mapas só são uma base de partida, na verdade o que a gente costuma fazer é ir com mapas das ruas e desenhar os rios conforme eles vão sendo descobertos pelas indicações. Vamos vendo os traçados das ruas, relevo, umidade, vegetação e a partir disso vamos desenhando em cima dos mapas.
Bueno – A minha questão sempre é como tornar este conhecimento, que é fascinante por si só, numa experiência lúdica e excitante. E que emocione, na verdade. O conhecimento em si não é suficiente para emocionar e causar movimento. E toda esta história de mapas, expedições e encontrar esses indícios traz muito a lembrança de um trabalho de piratas. E fizemos uma experiência recente que chamamos de Piratas de Rios e Ruas, em que juntamos jovens com crianças e com pais para que com o mapa na mão descubram onde estão esses tesouros da cidade.
Por que estes tesouros foram escondidos?
Bueno – No último século a gente teve essa malha incrível de rios – um tesouro, guardada, canalizada. Escondida para promover o crescimento caótico da cidade. Estamos fazendo um trabalho de recuperação, reencontro. Os rios foram cobertos por um equívoco de percepção nossa. Foram cobertos dos nossos olhos e talvez se voltarmos a percebê-los, a chance de voltar a tê-los seja maior. Mas é um processo sutil de começar a limpar os rios na percepção das pessoas.
Este seria o grande objetivo do Rios e Ruas?
Bueno – Sim, reconectar o cidadão urbano com a natureza do lugar onde ele vive. Atualmente não temos o menor vínculo com a natureza local. Cidade sustentável começa por estar conectado com o ambiente onde se vive. O grande objetivo é trazer luz e vida a este lugar, a partir das águas. Do ponto de vista pragmático, nosso objetivo é começar a abrir rios na cidade de São Paulo.
É possível trazer de volta os rios de São Paulo?
Bueno – Isso é uma tendência mundial na Ásia, Europa e Estados Unidos e São Paulo está atrasada. Várias metrópoles que canalizaram e poluíram seus rios estão tendo ações consistentes e articuladas para reconstruir essa realidade. Há tecnologia e resiliência dos rios para voltarem a viver como sempre viveram mesmo depois de canalizados e enterrados por décadas. Acreditamos que se tivermos em São Paulo o caso de um rio canalizado recuperado e aberto à visitação, ao apreço e à convivência faremos uma curva irreversível em relação ao desenvolvimento da cidade e ao modelo de crescimento dela.
Campos Jr. – Seriam interferências pequenas na realidade da cidade. Existem muitos rios prontos para serem reabertos, mas não se dá valor a isso. Se abrirmos trechos de 100, 150 metros de rio e as pessoas puderem desfrutar novamente, vão começar a pensar se existem outros e se nossa cidade não poderia ser diferente. No Jardim Botânico de São Paulo, no Ipiranga, isso foi feito. O Rio Pirarucaua ficou 70 anos dentro de uma galeria, em 2008 foi reaberto e desde então a visitação ao parque quintuplicou.
Um rio nunca morre?
Campos Jr. – Não, é praticamente impossível matar um rio.
Bueno – Somos capazes de matar um rio no nosso olhar. O rio que temos em São Paulo hoje está morto na nossa percepção porque o associamos com esgoto, enchentes e como inimigo da cidade. Fomos educados a achar que o rio é um problema que deve ser enterrado.
Como a volta dos rios pode transformar a cidade?
Bueno – O rio é um grande humanizador da cidade. Ela se torna muito mais tolerante, solidária, acolhedora do que aquelas que cobrem seus rios e não honram sua conexão com as águas do seu lugar. Cidades com rios são menos violentas, mais aprazíveis.
Qual é a sensação mais forte que as pessoas têm ao constatar que há rios invisíveis sob seus pés?
Bueno – Saber que enterramos nossos rios é muito forte, muito triste. Mas nesse momento de tristeza temos duas opções: nos deprimir, revoltar e reclamar dos políticos e gestores, ou então, usar esta mesma energia para fazer alguma coisa. A tristeza se transforma em indignação e esta indignação nos move a agir, a ter uma atitude pró-ativa, entusiasta e otimista. Estamos transformando esta tristeza em criatividade e iniciativa.