HÁ ALGO ERRADO EM UM PAÍS QUE DEPENDE DO ‘BICO’ PARA SOBREVIVER

Por Jorge Abrahão, coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis | Foto: Caio (Pexels)

Não bastasse cumprir as horas diárias de trabalho e gastar outras tantas no transporte, deslocando-se até ele, quase metade da população brasileira tem que fazer um “bico” para atender suas necessidades básicas. Que tipo de sociedade construímos que exige tal sacrifício de boa parte da população?

Pesquisa nacional de percepção sobre a desigualdade, lançada na última semana pelo Instituto Cidades Sustentáveis, revela que 45% dos brasileiros precisaram recorrer a um serviço extra para complementar a renda no último ano. Fazem faxina, manutenção, produzem alimentos. Se viram nos trinta, afinal de contas são brasileiros, não se iludem mais com as promessas de melhoria de vida alardeadas pela política e pelas empresas, e vão para a vida.

A pesquisa mostra também que 7 em cada 10 brasileiros percebem o aumento de pessoas em situação de fome e pobreza. Praticamente a metade dos entrevistados conhece ou tem observado pessoas com dificuldade para comprar alimentos. Um terço relata o aumento da população em situação de rua, e 3 em cada 10, o aumento de pedintes nas ruas e semáforos.

Atender à primeira das necessidades básicas, a alimentação, ainda é um luxo no país que é a 12ª economia global. É vergonhoso que um dos maiores produtores de alimentos do mundo não consiga alimentar sua própria população. Que política econômica é essa que não prioriza as pessoas?

A crise econômica, a elevada inflação e a consequente perda de capacidade de compra são possíveis explicações para tal situação. Mas é necessário muita incompetência das lideranças políticas para que permitam que cheguemos a esse ponto.

Outra dimensão da desigualdade pesquisada foi a diferença de tratamento entre pessoas negras e brancas: 75% reconhecem que há diferença de tratamento e apontam os shopping centers, as escolas e o local de trabalho como os principais locais de preconceito.

Quanto ao assédio, 47% das mulheres declararam já ter passado por alguma situação do tipo, principalmente na rua ou nos transportes públicos. Estes temas dão a medida do desafio que ainda temos pela frente, em temas como o racismo e o machismo.

Os dados mostram nossa incapacidade como sociedade de eleger o combate à desigualdade como prioridade nacional. Nossa porque elegemos políticos que vêm agravando essa situação, como é o caso do atual governo federal, que naturaliza a desigualdade entre os brasileiros.

A desigualdade é resultado de políticas que a estimulam e, justamente por isso, pode também ser solucionada pela política. Ela é a raiz de uma série de problemas da sociedade, como violência, mortalidade infantil, saúde e educação precárias, gravidez na adolescência, racismo e machismo, entre outros. Além disso, está totalmente integrada à questão climática, pois os desafios do clima passam pelo atendimento das necessidades básicas da população e a consequente consciência sobre o tema.

Um caminho será estimular o debate e o sentido crítico na sociedade, permitindo identificar os oportunistas que agravam cada vez mais o problema. A eleição é uma excelente chance para identificar as propostas que naturalizam a desigualdade e as que a colocam no centro da política. Sem reduzir as desigualdades no Brasil, estaremos apostando na instabilidade política e social e patinando frente às possibilidades de melhorias da sociedade.

Jorge Abrahão
Coordenador geral do Instituto Cidades Sustentáveis, organização realizadora da Rede Nossa São Paulo e do Programa Cidades Sustentáveis. 

Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo. 

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