Secretário de SP exclui educação de papel do Estado e gera reação negativa

Membro da gestçai Alckmin cita só justiça e segurança entre tarefas estatais

PAULO SALDAÑA – O ESTADO DE S. PAULO

O secretário estadual da Educação de São Paulo, José Renato Nalini, publicou artigo no site da pasta defendendo que o Estado atue apenas em situações "elementares e básicas", sem mencionar o atendimento à educação.

Para o integrante do governo Geraldo Alckmin (PSDB), "tudo o mais deveria ser providenciado pelos particulares" e há uma "proliferação de direitos fundamentais" (leia a íntegra abaixo). O texto provocou reação negativa entre educadores e especialistas, principalmente por desconsiderar o papel do Estado na garantia do direito à educação.

O artigo "A sociedade órfã" foi publicado na terça-feira (5) no canal de notícias do site da secretaria. O espaço é destinado a informações e posicionamentos da pasta. No texto, Nalini critica a visão do Estado como "provedor", que teria se consolidado a partir da perda de importância de referências como a família, a igreja e a escola.

"Muito ajuda o Estado que não atrapalha", diz. "Que permite o desenvolvimento pleno da iniciativa privada. Apenas controlando excessos, garantindo igualdade de oportunidades e só respondendo por missões elementares e básicas. Segurança e Justiça, como emblemáticas."

Para Nalini, a população "se acostumou a reivindicar". "Tudo aquilo que antigamente era fruto do trabalho, do esforço […], passou à categoria de 'direito'", afirma. O secretário sugere o resgate dos valores da família e da igreja.

Ex-presidente do Tribunal de Justiça, Nalini assumiu a secretaria em janeiro pregando a abertura ao diálogo após movimento de ocupações de escolas no ano passado. Nina Ranieri, professora da USP e especialista em direito à educação, diz estranhar o trecho em que o secretário elenca as missões do Estado. "Ele cita segurança e justiça, esquecendo educação e saúde, direitos fundamentais celebrados na Constituição."

Para Salomão Ximenes, professor da Universidade Federal do ABC, o artigo mostra uma visão de um Estado que só atuaria quando a família não consegue, ao contrário do que a Constituição prevê. Ele critica a inclusão do artigo no site da pasta. "É um espaço para se comunicar com alunos e professores. Não é oportuno que ninguém, quanto mais o secretário, use para doutrinação."

Coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara se disse "atônito" com o texto também por, na sua visão, ele ir contra a Constituição. Priscila Cruz, do Movimento Todos Pela Educação, diz que a publicação indica a ideia equivocada de que a sociedade deve cobrar menos do poder público. "Não vamos esquecer que 245 mil jovens estão fora da escola em São Paulo. Cadê as ações do governo para trazê-los?"

Ela pondera que não basta reivindicar. "A gente precisa assumir algumas responsabilidades, porque só a dimensão do direito não vai fazer a gente avançar."

'POUCA ATENÇÃO'

À Folha Nalini afirmou que o texto reflete uma visão geral, não só da educação, e é um chamado à "consciência". "Falei na questão de justiça e segurança porque a família não pode se encarregar disso", diz. "Quem leu e encontrou a incongruência ou foi pouca atenção ou má-fé."

Segundo Nalini, a importância da educação é um pressuposto, "mas a família pode colaborar mais." "As pessoas precisam ter mais consciência de que as pretensões podem ser todas legítimas e justificadas, mas a dimensão das reivindicações às vezes não cabe no PIB", afirma.

Leia abaixo a íntegra do texto do secretário da Educação, José Renato Nalini, publicado no site da Secretaria Estadual da Educação na última terça (5):

Uma das explicações para a situação de anomia que a sociedade humana enfrenta em nossos dias é a de que ela se tornou órfã. Com efeito. A fragmentação da família, a perda de importância da figura paterna "" e também a materna "" a irrelevância da Igreja e da Escola em múltiplos ambientes, gera um convívio amorfo. Predomina o egoísmo, o consumismo, o êxtase momentâneo por sensações baratas, a ilusão do sexo, a volúpia da velocidade, o desencanto e o niilismo.

Uma sociedade órfã vai se socorrer de instâncias que substituam a tíbia parentalidade. O Estado assume esse papel de provedor e se assenhoreia de incumbências que não seriam dele. Afinal, Estado é instrumento de coordenação do convívio, assegurador das condições essenciais a que indivíduos e grupos intermediários possam atender à sua vocação. Muito ajuda o Estado que não atrapalha. Que permite o desenvolvimento pleno da iniciativa privada. Apenas controlando excessos, garantindo igualdade de oportunidades e só respondendo por missões elementares e básicas. Segurança e Justiça, como emblemáticas. Tudo o mais, deveria ser providenciado pelos particulares.

Lamentavelmente, não é isso o que ocorre. Da feição "gendarme", na concepção do "laissez faire, laissez passer", de mero observador, o Estado moderno assumiu a fisionomia do "welfare state". Ou seja: considerou-se responsável por inúmeras outras tarefas, formatando exteriorizações múltiplas para vencê-las, auto-atribuindo-se de tamanhos encargos, que deles não deu mais conta.

A população se acostumou a reivindicar. Tudo aquilo que antigamente era fruto do trabalho, do esforço, do sacrifício e do empenho, passou à categoria de "direito". E de "direito fundamental", ou seja, aquele que não pode ser negado e que deve ser usufruído por todas as pessoas.

A proliferação de direitos fundamentais causou a trivialização do conceito de direito e, com esse nome, começaram a ser exigíveis desejos, aspirações, anseios, vontades mimadas e até utopias. Tudo a ser propiciado por um Estado que se tornou onipotente, onisciente, onipresente e perdeu a característica de instrumento, para se converter em finalidade.

Todas as reivindicações encontram eco no Estado-babá, cuja outra face é o Estado-polvo, tentacular, interventor e intervencionista. Para seu sustento, agrava a arrecadação, penaliza o contribuinte, inventa tributos e é inflexível ao cobrá-los.

Vive-se a paranoia de um Estado a cada dia maior. Inflado, inchado, inflamado e ineficiente. Sob suas formas tradicionais "" Executivo, Legislativo e Judiciário. Todas elas alvo fácil das exigências, cabidas e descabidas, de uma legião ávida por assistência integral. Desde o pré-natal à sepultura, tudo tem de ser oferecido pelo Estado. E assim se acumulam demandas junto ao Governo, junto ao Parlamento, junto ao sistema Justiça.

O Brasil é um caso emblemático. Passa ao restante do globo a sensação de que todos litigam contra todos. São mais de 106 milhões de processos em curso. Mais da metade deles não precisaria estar na Justiça. Mas é preciso atender também ao mercado jurídico, ainda promissor e ainda aliciante de milhões de jovens que se iludem, mas que poderão enfrentar dificuldades irremovíveis num futuro próximo.

No dia em que a população perceber que ela não precisa ser órfã e que a receita para um Brasil melhor está no resgate dos valores esgarçados: no reforço da família, da escola, da Igreja e do convívio fraterno. Não no viés facilitado de acreditar que a orfandade será corrigida por um Estado que está capenga e perplexo, pois já não sabe como honrar suas ambiciosas promessas de tornar todos ricos e felizes.

JOSÉ RENATO NALINI, secretário da Educação do Estado de São Paulo

Matéria publicada originalmente na Folha de S. Paulo.

 

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