Das Manifestações de Junho à Copa: a banalização da porrada como legado

Artigo de Leonardo Sakamoto

O texto é mais denso que o de costume, mas o assunto não é simples.

1) Apenas 20 centavos? – Um dos principais legados das manifestações de junho do ano passado foi difundir a percepção de que o espaço público é para ser ocupado e que discussões políticas devem sair do armário. O processo – iniciado pelas reivindicações do Movimento Passe Livre e que se tornou uma catarse coletiva alimentado pela violência policial, o desejo de participação na vida pública dos mais jovens, as encruzilhadas do crescimento econômico e o próprio contexto político – não levou o país a uma revolução ou a um golpe, como pensaram alguns em pânico ou êxtase.

E, o mais importante, catarses deixam legados. Mas catarses têm sempre começo, meio e fim.

2) Garis e Sem-teto – Houve uma nova janela de oportunidade meses antes da Copa do Mundo. O medo de autoridades públicas (que se lembravam bem de junho) de que paralisações e greves de categorias de serviços essenciais ocorressem durante os jogos aliado ao pavor de que movimentos sociais realizassem passeatas e bloqueios levou ao atendimento de parte dessas reivindicações. Destaque para a greve dos garis do Rio e os protestos dos sem-teto em São Paulo. A estratégia, é claro, nem sempre funciona. Os metroviários sofreram duras e, ao meu ver, injustas retaliações, como demissões em série, após o governo paulista perceber que a estratégia de pressão enfraquecera por conta da extensão da greve e, principalmente, da iminência dos jogos.

Analisando de forma racional, seria muito difícil imaginar que qualquer categoria de trabalhadores resolvesse fazer grandes atos durante a Copa. Não contaria com apoio popular e, com isso, governos sentiriam-se “autorizados'' a reprimi-los.

3) Paixão nacional – Muita gente subestima, aliás, o poder do futebol por aqui. Temos um esporte (sensacional, incrível, tudibão!) que, por gerações, foi decantado como elemento de identidade nacional. Além de uma seleção coroada com a missão de representar tudo o que pensamos que somos (ou que deveríamos ser). Somado a isso, um bombardeio midiático e político que reforça essa identidade, a ponto de transformarmos adversários em inimigos em campo e fora dele. Tudo para que, ao fim, sejamos “um só coração'' – ou qualquer pataquada desse nível. O fato é que isso funciona em anarquistas, socialistas, capitalistas, trabalhadores, ativistas, empresários e governo. Muitos estão na frente da TV, perdendo dinheiro em bolões e falando sobre os jogos.

Enfim, quem aposta contra o futebol sempre perde.

4) Copa das Copas – Com a chuva de gols em campo, o churrascão correndo solto na laje ou à beira da piscina e os serviços essenciais funcionando de forma satisfatória sem que as expectativas de pavor se confirmassem, o sentimento pessimistaa deu lugar à aprovação do evento. Nós, brasileiros médios, nos encantamos com a visão positiva dos estrangeiros sobre nós mesmos, de povo alegre e festeiro. Afinal, já sabíamos que o “Brasil é demais'', faltava o resto reconhecer isso.

Não é a aprovação de Dilma que cresce com a aprovação da Copa. O mau humor contra o estado das coisas gerado pelo pessimismo antes do evento é que havia influenciado a intenção de voto.

5) Hora da vingança – Com o início da Copa, o apoio aos atos contra o evento arrefece. Não porque as pessoas deixem de concordar com eles, mas, enfim, é a Copa. Com as atenções da sociedade civil e da mídia (atores responsáveis por monitorar as ações do poder público) desmobilizadas ou voltadas ao mundial, e com o público jovem (que faz fluir informações sobre manifestações e protestos) também conectado ao que acontece na Copa, ficou mais fácil para o Estado agir da forma que achasse melhor para manter a “paz'' e a “ordem''. Mesmo que os atos sejam pacíficos. Em outras palavras, descer o cacete sem ser importunado. Afinal, são apenas “baderneiros que querem estragar a festa''.

Não apenas isso, mas a polícia aproveita o momento para fazer uma espécie de “caça às bruxas'', atacando movimentos que lhe causaram transtornos nos últimos 12 meses.

6) Recesso de direitos – Uma pergunta incômoda tem sido feita: levando em conta que, neste momento, a maior parte da população não irá se incomodar com presos políticos e prisões arbitrárias e que o impacto de manifestações é menor que o habitual, não seria um erro estratégico realizar manifestações e passeatas durante a Copa? Independentemente do fato de pressão poder funcionar mesmo durante o evento (o MTST e o Plano Diretor de São Paulo que o digam), a pergunta, na verdade, é capciosa.

Não importa a razão, o momento ou a capacidade de gerar resultados, o direito à livre manifestação, não pode entrar “em recesso'' por conta da Copa do Mundo, do Carnaval ou de qualquer razão.

7) Patrulha amiga – Contudo, como já comentei aqui, incorre em um erro tremendo as pessoas que, no desespero por Justiça, procuram culpados onde eles não estão. Não se convence o outro a participar chamando-o de alienado e ignorante. É falsa dicotomia estabelecida entre curtir o futebol na Copa e defender direitos. Se assim fosse, a quantidade de vezes que ativistas ficam gritando praticamente sozinhos contra o trabalho escravo teria que entrar na conta desse pessoas que, hoje, cobra engajamento. Nem sempre se pode ou se quer estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Afinal, perdemos entes queridos, ficamos doentes, temos problemas pessoais. Ou simplesmente estamos assistindo a um jogo. Muitas causas são válidas e não apenas as que tomamos para nós mesmos.

Sofrer com um jogo de futebol e sofrer com o desrespeito à dignidade alheia não são excludentes.

8) Banalização da porrada – Quando a Copa (que tem tudo para ser a Copa das Copas) terminar e com o monitoramento do poder público por parte da mídia retornando a níveis normais, acredito que a polícia será obrigada a garantir as aparências novamente. Ou seja, se sentirá menos à vontade para prisões arbitrárias e violência gratuita de ativistas e manifestantes, uma vez que, como já disse, junho do ano passado ajudou a aumentar a percepção de que o espaço público é para ser ocupado e que discussões políticas devem sair do armário. Mas se a arbitrariedade e a violência sofridas durante o evento por ativistas é deplorável, elas são pequenas em comparação ao que jovens e negros da periferia passam na mão da polícia diariamente. Polícia que, paradoxalmente, é bastante negra, jovem e da periferia. E a periferia vai continuar levando pau. A periferia sempre leva pau.

Se junho de 2013 deixou legados, este momento também pode ter o seu: reforçar junto aos atores públicos a percepção de que os direitos fundamentais de uma parcela da população só valem quando tiver muita gente de olho. Se isso ocorrer, não há título de campeão ou de melhor Copa de todos os tempos que compensará o retrocesso.

Artigo publicado originalemente no Blog do Sakamoto, Uol Notícias Cotidiano.
 

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