“Avaliação das calçadas da capital” – Veja SP

Em meio a crateras e obstáculos, quase 70% não obtiveram a média mínima para ser aprovadas

por Maurício Xavier

Faça um teste: escolha uma rua qualquer de São Paulo e tente caminhar em linha reta, a passos normais, pela calçada. Em poucos minutos, ficará evidente que a tarefa beira o impossível. Uma coleção de acidentes geográficos obriga o desavisado pedestre a desenvolver agilidade de atleta para superar desafios como ir à padaria da esquina. O “salto sobre buraco”, a “escalada de degraus” e o “slalom entre postes” estão entre as modalidades mais populares. E, como em um esporte radical de verdade, os praticantes arriscam a integridade física.
É difícil mensurar a quantidade de quedas na capital, mas um estudo de 2003 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calculou que seriam 100.000 por ano. Em outubro, o consultor de trânsito Philip Gold atualizou a pesquisa e projetou o número de 170.000 na região metropolitana. “Trata-se de um problema grave de saúde pública, e é inacreditável que a sociedade não veja isso”, afirma Gold. O custo social acumulado de todos esses tombos giraria em torno de 2,9 bilhões de reais, incluindo gastos hospitalares e outros mais difusos, como os dias de trabalho perdidos durante a recuperação. “Acompanho essas estatísticas há décadas, e não vejo sinal de melhora”, lamenta o engenheiro Eduardo José Daros, presidente da Associação Brasileira de Pedestres (sim, ela existe).

Outro levantamento, realizado em agosto no Hospital das Clínicas, mostrou que uma a cada cinco vítimas de queda atendidas no pronto-socorro havia desabado em calçadas. Os buracos estiveram entre os vilões em 40% dos casos. “E os idosos não são a maioria dos pacientes: a idade média varia entre 36 e 50 anos”, diz o médico Jorge dos Santos Silva, diretor clínico do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do HC. As lesões mais frequentes são as entorses (45%), seguidas pelas contusões (35%) e pelas fraturas (8,5%), principalmente no pé e no tornozelo, mas também no joelho, punho, cotovelo e ombro. “Hoje, os acidentes em calçada representam o principal ganha-pão de um ortopedista”, ironiza o médico Fabiano Nunes Faria, do Hospital Beneficência Portuguesa.

Para calcular a dimensão da cratera em que estamos enfiados, VEJA SÃO PAULO percorreu nos últimos dias setenta ruas da capital e avaliou suas condições. Cinco critérios foram analisados: buracos; degraus e inclinações; obstáculos (como postes, vasos e mesas); largura mínima (1,20 metro de faixa livre); e rampas de acesso para cadeirantes. Cada quesito rendeu notas de 1 (péssimo) a 5 (excelente) — os resultados de 44 vias estão distribuídos pelas páginas (o levantamento completo pode ser acessado em abr.io/avaliacao-calcadas). Do total de lugares, cerca de 70% obtiveram média inferior a 3. Quase 20% deles receberam avaliações entre “ruim” e “péssimo”.
Exemplo emblemático é a Avenida Imirim, na Casa Verde, com chão destroçado, sequências de escadarias, trechos de até 60 centímetros de largura (metade do mínimo exigido) e tranqueiras diversas abandonadas pelo caminho. Só duas vias, a Avenida Paulista e a Rua Borges Lagoa, na Zona Sul, tiveram média “boa”. Nem mesmo algumas bem avaliadas escapam dos problemas. É o caso da Avenida Brigadeiro Faria Lima, que oscila entre a perfeição na região do Shopping Iguatemi e o descalabro completo nas proximidades do Largo da Batata.
Embora as calçadas sejam instaladas em área pública, a responsabilidade pela sua conservação é do proprietário do imóvel. Dos 32.000 quilômetros de vias da cidade, apenas 3% — aquelas diante de prédios públicos — deveriam ser mantidos pela prefeitura. Ou seja, a esmagadora maioria é considerada um bem privado. Uma noção questionável, com prováveis raízes na origem da urbanização da capital. Os primeiros passeios, no século XIX, eram estreitos e construídos como anteparo para proteger a parede das casas contra o barro das ruas. Não surgiram para servir a pedestres. “Por que a rua é pública e a calçada é privada?”, questiona a arquiteta Leticia Lemos, da TC Urbes, empresa que realiza projetos de mobilidade.
Em 2008, uma lei de autoria da então vereadora e hoje deputada federal Mara Gabrilli tentou mudar esse panorama. O Plano Emergencial de Calçadas (PEC) transferiu 600 quilômetros em “vias estratégicas” para a alçada da prefeitura. Elas acabaram sendo escolhidas por meio de um software que identificou os locais com maior concentração de serviços e, portanto, de pedestres. A medida, no entanto, pouco ajudou a melhorar a situação. Uma das que entraram no pacote, a Avenida Sumaré continua com problemas, mesmo tendo sido reformada recentemente. “O objetivo original era recuperar 300 metros, 10% do total, mas duvido que tenham feito 75 metros”, diz Mara, que em 2011 criou o Guardiões das Calçadas. O grupo tira fotos dos problemas mais graves e entrega um relatório à subprefeitura correspondente: 200 quilômetros já foram visitados.

No ano passado, a administração municipal endureceu com a população ao ampliar a fiscalização e anunciar mudanças nas regras para a aplicação de multas. Antes, o valor variava entre 100 e 500 reais, de acordo com o tamanho do buraco. Hoje o cálculo é realizado pela extensão da calçada (300 reais por metro). Ou seja, se ela medir 10 metros, uma mísera rachadura pode render multa de 3.000 reais. Como resultado, o número de autuações dobrou entre 2011 e 2012. Com a alteração no cálculo, a prefeitura arrecadou 41 milhões no ano passado, contra 3,7 milhões em 2011. A entrada de tanto dinheiro, porém, como qualquer paulistano pode observar no dia a dia, não teve impacto proporcional em termos de avanços na conservação. Outro ponto muito criticado na intervenção da prefeitura envolveu a adoção de um material específico em seus passeios próprios, o ladrilho hidráulico, restringindo as reformas particulares a esse tipo de piso, além do concreto e do bloco pré-moldado. “Esse tijolinho é uma porcaria, derrete com o tempo”, observa o arquiteto João Carlos Cauduro, um dos responsáveis pelo projeto que instalou o mosaico português na Avenida Paulista em 1973. “Só alguém muito ‘quadrado’ pode pensar que todas as calçadas de uma cidade têm de ser iguais”, completa ele.

No começo do ano, logo depois de tomar posse, o prefeito Fernando Haddad acenou com a possibilidade de alterar a lei atual. Em vez de aplicarem a multa, os fiscais estabeleceriam um prazo ao proprietário para resolver a irregularidade. Outra iniciativa em estudo é a possibilidade de o poder público realizar a manutenção, mas cobrar o valor do dono do imóvel. No exterior, metrópoles como Nova York já adotam política semelhante há muito tempo. Lá, quando o departamento responsável pela fiscalização encontra problemas, pode executar a reforma e enviar depois a conta ao proprietário daquele trecho.

(Foto: Veja São Paulo)

Ao mesmo tempo em que esperam que atitudes mais rigorosas sejam adotadas aqui, grupos de cidadãos tentam chamar atenção de modo original. Formado por publicitários e designers, o Curativos Urbanos tem espalhado tapetes de borracha colantes em formato de band-aid sobre os buracos da capital. Desde o ano passado, foram realizadas ações no centro, na Vila Madalena, em Pinheiros e na Avenida Paulista, com a colocação de 120 adesivos. “Nós sempre recolhemos a instalação alguns dias depois, mas estamos pensando em usar um material biodegradável para deixar mais tempo na rua”, conta Jeniffer Heemann, uma das organizadoras das intervenções. Enquanto acompanha esse tipo de iniciativa, o paulistano sonha é com um “remendo” definitivo em seu caminho diário.

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