Polícia mata mais homens, negros e jovens no estado de São Paulo

Segundo autora de estudo inédito, letalidade policial é vista como prevenção

Fernanda Mena e Júlia Barbon – Folha de S. Paulo

Há mais homens, negros e jovens entre pessoas mortas em decorrência de intervenção policial do que entre as vítimas de homicídio doloso no estado de São Paulo, segundo pesquisa inédita.

De 2014 a 2016, 16% dos mortos por policiais tinham menos de 17 anos, o dobro da proporção daqueles alvo de homicídio geral (8%). Além disso, 67% das vítimas fatais de ações policiais eram pretos ou pardos, contra 46% do total de assassinatos no estado.

O número de mortos pelas polícias paulistas vem crescendo e bateu recorde em 2017, com 943 casos —o pico dos últimos 25 anos, superado apenas pelos 1.470 óbitos de 1992, quando o dado ainda não incluía pessoas mortas por policiais fora de serviço.

Para a socióloga Samira Bueno, autora do estudo, fica evidente a influência de fatores raciais e geracionais no uso da força letal pelos policiais. 

Diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança, ONG que reúne especialistas no tema, Samira demonstrou que 6,1 adolescentes foram mortos por agentes a cada mil jovens apreendidos em flagrante de 2013 a 2016, enquanto, entre adultos, o índice foi de 3,4 mortos para cada mil presos. Ela analisou 3.107 registros nesses quatro anos.

“Isso mostra que interação da polícia com o adolescente é mais violenta. Existe a ideia de que essa letalidade pode funcionar como uma política preventiva. De que, se você poupar o lobo hoje, vai condenar a ovelha amanhã”, afirma.

Segundo ela, parece haver um descompasso entre o que policiais constroem como a imagem do criminoso e as vítimas de suas ações, os mais jovens. “Muitas delas tinham algum vínculo com as drogas, o que não necessariamente as conecta ao tráfico ou a um crime em específico.”

Entre as vítimas mais novas de intervenções policiais, há garotos de 10 e 11 anos de idade, todos de regiões periféricas da Grande São Paulo.

Em nota, a PM avaliou que “jovens adultos e adolescentes que ingressam no crime possuem uma intempestividade não vista em criminosos mais velhos”.

De acordo com a PM, cerca de 25% dos roubos dos últimos cinco anos com autor identificado ocorreram com a participação de adolescentes e cerca de 60% das mortes em decorrência de intervenção policial acontecem em flagrantes de roubo. 

“É compreensível, portanto, que haja essa diferença percentual”, diz a nota, que destaca: “A PM não comemora as mortes, e sim as lamenta”.

Para a socióloga, há um aspecto perverso nessa estatística. “O que está em jogo não é matar bandido, ainda que boa parte da população defenda isso, e sim um mandato que tem sido dado aos policiais para que matem quem eles pensam que é bandido, mesmo que o indivíduo não esteja cometendo ato ilícito nem represente ameaça.”

Essa lógica do estudo emergiu em entrevistas realizadas com 16 ex-PMs no Presídio Militar Romão Gomes, na capital. A maioria dos que estavam presos ali cumpria pena por homicídio, e nenhum era mulher. Entre os entrevistados, 75% haviam integrado grupamentos tidos como de “elite”, como Rota ou Força Tática.

Nas conversas, segundo a pesquisadora, ficou claro que a morte fazia parte do cotidiano deles, bem como a ideia de que as ações letais seriam depurativas, justas e desejadas.

“Existe certa surpresa por parte dos entrevistados com a prisão porque, na cabeça deles, estavam fazendo justiça ou aquilo que era certo”, relata Samira, que nomeou sua pesquisa “Trabalho sujo ou missão de vida? Persistência, reprodução e legitimidade da letalidade na ação da Polícia Militar de SP”.

“Alguns desses policiais eram parabenizados pelo seu comando quando uma ocorrência terminava com a morte do suposto agressor”, diz.

No domingo (13), o governador de São Paulo, Márcio França (PSB), homenageou com flores a PM Kátia Sastre, que reagiu a um assalto na porta da escola de sua filha, em Suzano (Grande SP), disparando três vezes contra um assaltante, que morreu.

A ação da policial foi correta, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, mas, ao enaltecê-la, o governador pode passar mensagem de incentivo à morte de agressores.

França é candidato à reeleição e sua ligeireza em tratar de um assunto tão delicado foi interpretada como oportunismo eleitoral, uma vez que contradiz diretrizes do comando da PM, que busca reduzir a letalidade policial. 

BÔNUS POLICIAL

Na contramão deste objetivo, o secretário de Segurança Pública, Mágino Alves Barbosa Filho, decidiu suspender a redução no bônus de policiais nos casos em que houve aumento de mortes provocadas por eles. O bônus, pago por cumprimento de metas, pode chegar a R$ 2.000.

O discurso do governador —que afirmou que ofensas ao uniforme da Polícia Militar podem representar risco de morte a agressores— não é novo no estado. Em 2012, seu antecessor, o hoje presidenciável Geraldo Alckmin (PSDB), disse ao comentar ação da PM que terminou com nove mortos no interior de SP: “Quem não reagiu está vivo”. 

Estudos apontam que um em cada quatro policiais é morto fora de serviço. A maioria estava armada e, em mais da metade dos casos, o policial foi baleado na rua, o que sugere que ele tenha sido vítima de um crime ou intercedido em uma ocorrência, mesmo sem o aparato necessário.

A queda no índice de homicídios em SP, de 65% de 2001 a 2016, não se traduziu numa redução da letalidade policial, que aumentou 42% no período. Com isso, aumentou o peso das mortes por policiais no total de homicídios. Hoje, segundo o Instituto Sou da Paz, um a cada cinco óbitos no estado é provocado pela polícia.

“É politicamente conveniente manter separadas as mortes decorrentes de intervenção policial dos homicídios. Hoje, se fossem somados, o índice de assassinatos em SP subiria dois pontos”, diz Samira, numa referência à atual taxa estadual de oito mortos por 100 mil habitantes.

As mortes pelas polícias estão concentradas em 20 municípios —em algumas regiões, elas correspondem a 45% do total de óbitos. Segundo ela, isso se deve ao fato de não haver políticas claras de contenção do uso da força e, no caminho contrário, ser disseminada a ideia de que o policial é um caçador de bandidos.

Samira, porém, destaca que este não é um problema generalizado na Polícia Militar. “Uma coisa é achar que bandido bom é bandido morto, outra é apertar o gatilho.”

Para ela, reverter esse quadro implica em três medidas fundamentais. Primeiro, publicar periodicamente dados de letalidade policial por batalhão. “O cidadão tem o direito de saber da conduta do policial da sua área.”

Segundo, responsabilizar os comandos por desvios de policiais sob sua alçada. “É muito cômodo depois culpar o indivíduo pelo problema.” Finalmente, diz que indenizar famílias de vítimas seria interessante. “Quando esse dinheiro sair do orçamento das polícias, o quadro deve mudar.”

Matéria publicada na Folha de S. Paulo
 

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