Por que a saída de Cunha é constitucional

Quem tem a possibilidade de assumir a Presidência (a qualquer momento) deve arcar com ônus de ostentar sempre todas as condições constitucionais de fazê-lo.

Por Márlon Reis e Luiz Flávio Gomes

Recebida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) uma denúncia ou queixa-crime por qualquer crime comum, contra o presidente da República, ficará ele suspenso automaticamente das suas funções (parágrafo 1º, inciso I, do artigo 86 da Constituição Federal). Se não julgado no prazo de 180 dias, reassume o cargo. Essa regra constitucional, que tem o propósito de preservar a integridade e a respeitabilidade do cargo máximo do país, deve valer não só para o presidente, senão também para todos os que estão na sua linha sucessória (vice-presidente e, na ordem, presidentes da Câmara dos Deputados, do Senado e do STF), que podem, em qualquer momento, assumi-la.

O que a Constituinte estabeleceu foi o primado do não exercício da Presidência da República por quem é réu em processo criminal. Embora presumido inocente, chefe de Poder que se transforma em réu fica incompatibilizado com o exercício da sua função de comando. Trata-se de uma exceção constitucional ao princípio da presunção da inocência para a preservação do exercício das altas funções de chefia da nação. O objetivo é assegurar proteção e higidez máxima ao mais elevado cargo eletivo da União.

O dispositivo citado quer, com toda a clareza, impedir que a Presidência seja, mesmo que de forma transitória, exercida por pessoa contra quem paira ação penal com tramitação admitida pela Suprema Corte. Essa medida extrema é justificada, porque as mais elevadas funções do Estado Democrático não podem vir a ser desempenhadas por quem ostenta mácula dessa grandeza, que conspurca a reputação e a imagem esperadas dos mais altos mandatários do país.

A norma constitucional é cogente e válida para todos os que podem assumir o cargo máximo da Presidência da República. Não se trata do afastamento processual, que se justifica por conveniência da instrução penal ou como reação a eventual desvio de conduta do réu, mas como mecanismo de proteção da própria institucionalidade democrática, cujos destinos não podem estar sob o comando de um processado criminalmente. Quem busca intimidar testemunhas, ocultar documentos ou se valer do cargo para intimidar integrantes dos demais poderes pode ser alcançado pelo afastamento cautelar previsto no artigo 319, VI, do Código de Processo Penal. Mas isso não se confunde com o afastamento constitucional.

Não se interpretando o artigo 86, parágrafo 1º, I, da Constituição Federal de forma adequada, em caso de afastamento ocasional (por motivo de viagem, enfermidade, férias, afastamento judicial ou determinado pela Câmara) ou definitivo do titular (por perda ou suspensão dos direitos políticos, cassação ou renúncia), a Presidência poderia ser exercida por alguém contra quem paira a circunstância impeditiva prevista no citado dispositivo.

Quem tem a possibilidade de assumir a Presidência da República (em qualquer momento) deve arcar com o ônus de ostentar sempre todas as condições constitucionais de assumi-la. Isso evita que se implante ou se agrave uma crise de estabilidade e de credibilidade, interna e externa, do país. Tratando-se do presidente ou do vice-presidente, deve-se operar o afastamento do próprio mandato eletivo. Em sendo o recebimento da denúncia operado contra o presidente da Câmara ou do Senado ou do Supremo Tribunal Federal, exige-se apenas o afastamento da função transitória (a presidência da instituição), de modo a se suprimir o risco de exercício indevido da Presidência da República pelo réu, remanescendo o direito ao exercício do cargo de deputado federal ou senador ou de ministro da Corte Suprema.

Em suma, se o Supremo Tribunal Federal, pelo Plenário, vier a receber denúncia contra qualquer um dos chefes de poder, é mais do que recomendável (e natural) o seu afastamento do exercício da instituição que dirige. As razões inspiradoras do dispositivo constitucional acima mencionado (CF, artigo 86, parágrafo 1º, I) valem, ipso facto, não apenas para o ocupante do cargo de presidente da República, mas também para todos os que estão em posição de assumir (a qualquer momento) interina ou definitivamente tal função.

Particularmente diante da inércia do poder político, acometido por uma súbita e deliberada cegueira diante das provas inequívocas de contas secretas na Suíça, nada mais oportuno que a intervenção do Ministério Público e do Judiciário, que são os únicos legitimados, como órgãos de controle do Estado (não dos governos), a agirem em favor da preservação da moralidade e do interesse públicos.

Márlon Reis é juiz e membro do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, Luiz Flávio Gomes é jurista e presidente do Instituto Avante Brasil.

Matéria originalmente publicada no portal O Globo

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