Para urbanista, São Paulo deve economizar água, e não fazer represas

Por Fernanda Mena

Teremos água nas torneiras em 2015? Se não chover o suficiente, o que faremos?

Essas são duas das principais questões que uma conversa com a urbanista Marussia Whately, do Instituto Socioambiental, suscita.

Desde criança, ela convive de perto com o sistema de abastecimento de São Paulo.

Cresceu no entorno da represa de Guarapiranga e viu sua areia branca dar lugar à lama preta e ao mau cheiro.

Hoje reconhecida como uma ativista pela água, Whately atua no Instituto Socioambiental (ISA) e reuniu 40 entidades para enfrentar a atual crise com o projeto Aliança pela Água.

O grupo avalia que as propostas do governo do Estado não dão conta da urgência da situação e insistem num modelo que consome muitos recursos sem alterar estruturas que promovem a falta de água.

Segundo Whately, redução de vazamentos do sistema, reflorestamento das áreas de mananciais e incentivo a captação e reutilização de águas são imprescindíveis. "Talvez não sejam medidas interessantes porque diminuiriam o quanto se fatura com a comercialização da água", diz.

A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha.

Folha – Quanto tempo pode levar para represas depreciadas pela crise se recuperarem?

Marussia Whately – Não sabemos porque o volume morto nunca foi usado antes. É algo inédito. Em 2003, houve uma estiagem forte, não tanto quanto a atual, e o sistema Cantareira chegou a 1% de sua capacidade [além do volume morto]. Levou cinco anos para ele voltar à marca anterior àquela estiagem, ou seja, pode demorar isso ou mais para se recuperar agora.

Como a represa se recupera?

Represas são formadas por rios e riachos, que a alimentam. A quantidade de água que eles mandam para a represa depende do quão preservado é seu entorno.

Se a água está protegida por floresta, a chuva cai, é absorvida pelo solo, alimenta o rio etc. Se não tem floresta, a água cai e evapora.

Há uma relação delicada e fundamental entre floresta e água. Como o entorno da represa Guarapiranga foi todo desmatado, por exemplo, a drenagem fica prejudicada. Além disso, a própria Sabesp joga esgoto na represa.

Como se trata esgoto em SP?

Para se ter uma ideia, só há cerca de cinco anos foram concluídas obras para tratamento do esgoto na região do clube Hebraica e do shopping Iguatemi. Ou seja, esse esgoto ia direto para o rio Pinheiros. Então, imagine como é no restante da cidade?

São Paulo tem 70% de coleta simples de esgoto. Daquilo que é coletado, 70% é tratado. Ou seja, do total do esgoto, só 50% passa por tratamento antes de ser jogado nos rios do Estado.

Só esgoto polui as águas?

São três as fontes de degradação das águas no Brasil. Primeira, esgoto urbano. Segunda, agrotóxicos e fertilizantes, que são nitrato: poluem e promovem a proliferação de algas. A terceira fonte é o desmatamento, que tem impacto no ciclo de produção e na qualidade da água.

Poluentes estão concentrados no volume morto usado hoje para o abastecimento?

Sim. A concentração de poluição é maior ali porque há menos água. Em nenhum momento se informou à sociedade sobre a qualidade da água do volume morto, então, não está claro o risco de seu consumo. Outro problema é que consumir o volume morto mata a represa. Ele é chamado assim porque está morto para o abastecimento, mas vivo para manter a represa úmida, viva.

Já estamos na segunda cota, estamos no negativo. É como usar um cheque especial. E isso mostra que não há uma gestão inteligente da água em São Paulo.

Qual seria uma medida alternativa ao volume morto?

Uma gestão mais responsável do sistema Cantareira. A gestão atual, do secretário Mauro Arce, está ignorando preceitos da política nacional de recursos hídricos e da outorga emitida pela Agência Nacional de Águas e pelo Departamento de Águas.

Um deles é uma ferramenta chamada curva de aversão a risco. Com base em parâmetros históricos, se definiu o quanto retirar da represa com base no quanto entra de água. E estão tirando mais e mais, mesmo com a queda brutal no nível de água.

Desde 2011 entra menos água no sistema do que deveria. E isso vinha sendo alertado. Em 2013, a estiagem depreciou as represas. Em outubro do ano passado, atendendo à curva de aversão a risco, deveria ter sido diminuída a retirada de água dali.

Isso é racionamento?

Racionamento é quando a empresa tem estrutura para distribuir água, mas não tem água. Em janeiro, quando o sistema já estava em 20% de sua capacidade, à beira da estiagem, a Sabesp aventou implantar racionamento no Cantareira para reduzir a retirada de água em 4,5 metros cúbicos por segundo.

Hoje, a redução é de 9 metros cúbicos. Se tivesse começado em janeiro, talvez não estivéssemos no volume morto.

O racionamento não ocorreu por causa das eleições?

A crise atual é fruto da combinação de quatro fatores com um quinto agravante. Primeiro, gestão temerária da área. Segundo, ufanismo: dizemos que temos 12% da água doce do planeta. Só que 80% desta água está na Amazônia e 70% da população está no Sudeste e no Nordeste, onde há disputa de demanda e poluição. Terceiro, eventos climáticos extremos e deficit de chuvas vêm sendo ignorados. O quarto é falta de transparência e de diálogo com vários segmentos da sociedade.

Agravante foi a eleição porque o governador dizia: "Não vai faltar água. Está tudo bem". E não está tudo bem.

Como avalia as propostas do governo para a questão?

O plano do [governador de São Paulo, Geraldo] Alckmin é um plano de obras. A crise da água está aquecendo a indústria de obras e de engenharia. Querem construir duas represas, fazer transposição, canal de ligação entre reservatórios etc., o que gera contratos e mais contratos.

Uma das maiores obras é trazer água da represa Jaguari, do rio Paraíba do Sul, que hoje está com 5% da sua capacidade e já tem uma região importante que depende dela. E se essa represa não se recuperar? De que adianta investir ali? Essa ideia de só investir no novo deixando o que está velho e detonado para trás é errada. Precisamos trabalhar a gestão das fontes atuais, que são mal cuidadas.

Como se faz isso?

Diminuindo perdas. Só no município de São Paulo, as perdas estão em torno de 37% da água, seja em vazamentos na rede, seja em água consumida sem ser paga, a chamada perda de faturamento. Houve muito investimento da Sabesp em diminuir a perda de faturamento, e menos em diminuir os vazamentos.

Para se ter uma ideia, hoje se perde 30% de água na rede de abastecimento do Estado. Isso equivale à produção de água dos sistemas Guarapiranga e Alto Tietê juntos no ralo. Vamos continuar a insistir no modelo de gestão da oferta? A tendência mundial é a gestão da demanda, ou seja, se temos só uma garrafa de água, temos de usá-la bem.

O que é gestão da demanda?

Se diminuirmos as perdas do sistema de 30% para 20%, economizaremos sete metros cúbicos de água por segundo, que é quase metade do que o Alckmin quer produzir com as novas obras propostas.

A cidade de Nova York, na década de 1990, vivia um dilema: construir mais para trazer mais água e manter o padrão de consumo ou mudar o modelo. Eles botaram na ponta do lápis e viram que o custo-benefício do novo modelo era mais interessante.

Trocaram equipamentos –descarga e chuveiros– subsidiados nas contas de consumo. E o valor da conta diminuía 40%. Com isso, ganharam 30 anos de água.

A Sabesp tira 70 mil litros por segundo das represas. Ela perde 30%. A gente produz mais do que consome, mas perde tanto que ficamos sem.

O programa de descontos da Sabesp não inibe o consumo?

Ele está em vigor há seis meses e 50% da população conseguiu diminuir o consumo pela metade, mas 25% não consegue diminuir nada. Condomínios enfrentam dificuldades porque o hidrômetro é coletivo e é caro trocá-lo. Não dá pra entender porque nunca houve programa subsidiado para trocar hidrômetros coletivos por individuais. Seria uma economia fantástica.

Reflorestar áreas ao redor de represas e rios também ajuda?

O modelo de Nova York investiu nisso: comprou áreas ambientalmente sensíveis e as transformou em parques. Pagou serviços ambientais para agricultores do entorno protegerem a vegetação. Por aqui, isso já está regulamentado até no novo código florestal e no plano diretor de São Paulo. Falta vontade para fazer a transição.

Falta um plano de emergência?

Falta. Nenhuma das ações propostas pelo governo vai resolver a situação se o pior cenário de crise se configurar. A quantidade de água que há hoje nas represas dá só para cem dias de abastecimento.

A previsão é de chuvas um pouco acima da média. Se for assim, o risco é alto de chegarmos a abril do ano que vem pior do que chegamos a abril deste ano. Se chover na média, teremos problemas. Se chover menos, é o caos.

Se a quantidade de água não dá pra todo mundo, quem vai definir quem vai ter água e quem não vai? O mercado? Quem pagar mais?

Temos quatro meses decisivos pela frente para discutir um plano e implementá-lo. 

Entrevista originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo

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