Tribunal Popular de Moradia coloca poder público no banco dos réus

 

 

Julgamento, realizado no Jardim Ângela, foi encerrado com um termo de acordo que prevê a continuidade do diálogo para resolver os problemas apresentados pela população

O secretário estadual da Habitação, Ulrich Hoffmann, e representantes das subprefeituras do M´Boi Mirim e do Campo Limpo sentaram no banco dos réus nesta quinta-feira (29/10), durante o Tribunal Popular de Moradia realizado no Jardim Ângela, extremo sul da cidade de São Paulo. No evento, que integra o IV Fórum Social Sul, os integrantes do poder público ouviram dos moradores da região e dos promotores diversas denúncias e reclamações sobre problemas relacionados à habitação.

Ailton Alves da Silva, do Instituto de Cidadania Padre Josimo, relatou a luta de 800 famílias para ter um lugar para morar e a forma como foram despejadas pela polícia de um terreno situado no Capão Redondo. “Depois [do despejo] foi provado que a empresa que se dizia dona do terreno tinha milhões em dívida com o governo”, denunciou.

Para sensibilizar os presentes, Silva projetou diversas fotos das famílias que foram desalojadas. As imagens mostraram a difícil situação pela qual passaram mulheres, crianças e idosos, mas também a solidariedade da comunidade. Ao final de sua exposição, ele questionou: “Onde estavam o direito à moradia, o direito à saúde, o direito à dignidade humana?”.

Outro depoimento que emocionou os participantes foi o de Maria José, moradora do Jardim Capela. “Moro há 19 anos na beira do córrego, convivo com ratos e com o lixo que, infelizmente, os próprios moradores ajudam a fazer”, contou.

Disse ainda que as crianças do lugar brincam na beira do córrego, parecendo que ia encerrar a sua fala. Entretanto, olhou para onde estavam os representantes do poder público e prosseguiu. “A prefeitura não aparece lá, mas eu estou lutando por moradia digna, por justiça. Ninguém mora num lugar desse porque quer, mora porque precisa.”

Após ouvir as diversas queixas da população, o secretário estadual da Habitação apresentou a argumentação da defesa. “Temos que ter claro que ficar só na crítica não resolve os problemas, é preciso debater propostas.” Segundo Hoffman, as pessoas precisam pensar no valor necessário para enfrentar o déficit de habitação da cidade, que estaria em torno de 800 mil casas. “A secretaria tem recursos da ordem de 600 a 700 milhões, o que daria para construir umas 10 ou 15 mil casas por ano. Com os recursos do governo federal dá para chegar a umas 30 mil anuais, o que é pouco”, reconheceu.

O secretário lembrou que a região é uma área de manancial, que tem centenas de milhares de pessoas vivendo ao lado da Guarapiranga. “Tirar todo mundo da área de mananciais não é viável. O que estamos fazendo é urbanizar algumas favelas e deslocar as pessoas que vivem em áreas de risco.”

Ele garantiu estar disposto a reunir-se novamente com os representantes da sociedade na região e com os moradores para discutir casos concretos e tentar encontrar soluções. Quanto à denúncia sobre as 800 famílias que foram retiradas de um terreno pela força policial, Hoffmann defendeu o estado de direito. “Se eu faço uma ocupação, vou depender da decisão do Poder Judiciário.”

Ao abordar a questão, o promotor Arual Martins destacou que a Constituição Federal prevê o direito à moradia, obriga o estado a preservar os mananciais e o meio ambiente e também defende a propriedade privada. “Como vamos conciliar tudo isso?”, questionou. Em relação ao terreno que havia sido ocupado pelas famílias, ele avalia que a solução mais adequada seria “o governo fazer uma desapropriação da área por interesse social”.

O desembargador Urbano Ruiz, que presidia o Tribunal Popular, também apresentou sua opinião sobre o caso. “O artigo 5º da Constituição enumera os direitos individuais e garante o direito à propriedade, desde que ela cumpra a sua função social.”

Para o desembargador, se um terreno sem nenhuma utilidade ou função social for ocupado, não há como falar em direito à propriedade. “A propriedade que se destina apenas à especulação não é protegida pela Constituição”, concluiu.

Ao final dos debates, o promotor Ivandil Dantas propôs um termo de acordo que prevê a realização de uma reunião entre a sociedade civil e o secretário estadual de Habitação e a administração municipal para debater e tentar resolver problemas concretos dos moradores da região. O termo foi aceito e o encontro deverá ocorrer no início de dezembro.

Conquistas da região foram obtidas através de tribunais populares

Após o encerramento do evento, o padre James Crowe, conhecido como padre Jaime, informou que diversas conquistas da população local foram obtidas através dos dois tribunais populares realizados em 2002 e 2007.

“O próprio Hospital do M´Boi Mirim foi uma destas conquistas”, revela padre Jaime, que complementa: “O primeiro tribunal foi sobre segurança e saúde e logo depois o terreno [onde se localiza o hospital] foi declarado de utilidade pública”.

O mesmo ocorreu no segundo tribunal, sobre Educação e Cultura. “Depois do último, o terreno para o Centro de Cultura da região já foi declarado de utilidade pública”, comemora o padre da Igreja Santos Mártires, onde são realizados os tribunais populares. 

REPORTAGEM: AIRTON GOES airton@isps.org.br 

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