Medidas extremas

 

Fonte: Carta Capital

Rodrigo Martins

Com a segunda maior frota de automóveis do mundo, 6 milhões de veículos, São Paulo avança rumo a um colapso em seu sistema viário. O maior congestionamento deste ano superou a marca de 186 quilômetros, na segunda-feira 10. Nas marginais dos rios Pinheiros e Tietê, os carros circulavam, em média, a 7 quilômetros por hora, menos de um décimo da velocidade permitida e quase o mesmo tanto de uma caminhada a pé.

Por pouco a capital não bateu o recorde histórico de 191 quilômetros de engarrafamento verificado no dia 4 de novembro de 2004, apesar de a diferença ser, na prática, imperceptível. E, mais grave, a tendência não é nada animadora. Na última década, a frota paulistana aumentou 2,5 vezes mais do que a população. São licenciados diariamente 800 automóveis na cidade, número superior à média de 500 nascimentos por dia.

A frota nacional também está em franca expansão. Nos últimos dez anos, passou de 30 milhões para 50 milhões de veículos. Em 2007, foram quase 3 milhões de automóveis produzidos e 2,46 milhões, vendidos. É o melhor desempenho da história, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores.

Outro movimento percebido é a substituição do transporte coletivo pelo individual. De acordo com a Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (conhecida pela sigla NTU), a frota de ônibus de nove capitais brasileiras caiu 9% entre 1998 e 2006. No mesmo período, o número de passageiros transportados por mês teve queda de 25%. “É o resultado das deficiências do transporte de massas e do culto ao automóvel. O Estado precisa intervir para modificar esse cenário”, admite o secretário nacional dos Transportes, Luiz Carlos Bueno de Lima.

Entre os especialistas e gestores públicos, há o consenso de que o transporte coletivo deve ser priorizado, o uso dos automóveis precisa ser restringido, e as cidades devem planejar melhor o uso do espaço público, concentrando as principais redes de transporte nas áreas de maior adensamento populacional. Entre a retórica e a realidade, há, porém, um grande abismo. “Hoje, rios de dinheiro são gastos em obras viárias de pouca relevância, que muitas vezes ligam um congestionamento a outro. Mas a expansão dos trens metropolitanos e dos corredores exclusivos de ônibus segue a passos de tartaruga”, pontua o urbanista Cândido Malta Campos Filho, professor aposentado da Universidade de São Paulo.

Diante do agravamento dos congestionamentos na capital, o prefeito Gilberto Kassab (DEM, ex-PFL) apresentou um pacote de medidas para minimizar o estrago. Entre elas, a instalação de semáforos computadorizados, câmeras de monitoramento, equipamentos para fiscalizar o rodízio e a construção de dois corredores de ônibus. “Evidente que não vamos resolver todos os problemas a curto prazo, mas o importante é assumir que existe o trânsito e este é um problema grave da cidade.”

O governador José Serra (PSDB), por sua vez, aposta nas obras de expansão do Metrô e do Rodoanel, que interligará três rodovias federais e sete estaduais, a evitar que os veículos com outros destinos passem pela cidade. Por ora, apenas o trecho oeste da obra, com 32 quilômetros, está concluído.

As soluções técnicas de monitoramento e fiscalização do tráfego e a conclusão do Rodoanel podem contribuir para melhorar o trânsito. Mas os especialistas alertam que é preciso criar políticas públicas mais incisivas para coibir ou ao menos driblar a proliferação dos automóveis. “Quem tem de circular são as pessoas, não necessariamente de carro”, pontua Renato Boareto, diretor de Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades.

Urbanistas e engenheiros de trânsito, ouvidos por CartaCapital, indicaram cinco alternativas mais drásticas que a capital paulista poderia adotar para evitar o caos. Mais do que mero exercício intelectual, medidas extremas como essas são cada vez mais necessárias, como diz o empresário Oded Grajew, diretor do Movimento Nossa São Paulo. “Não adianta tratar uma pneumonia como se fosse uma gripe. O prefeito de Londres adotou uma série de ações tidas como impopulares, como o pedágio urbano, e conseguiu conquistar a aprovação da população. Tanto que foi reeleito. Por que não fazemos o mesmo?”, questiona. A seguir, uma discussão, ponto a ponto, da viabilidade dessas propostas.

Cinco vezes mais corredores de ônibus
Em muitos pontos da cidade, não vale mais a pena aumentar a frota de ônibus em circulação. Inevitavelmente, eles ficariam parados no trânsito. De acordo com o Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de São Paulo, a velocidade média dos ônibus na cidade é de 12 quilômetros por hora, metade da média de 20 anos atrás. Resultado: a lentidão e os freqüentes atrasos estimulam os usuários a migrar para outros meios de locomoção, como o carro, que circula com o dobro da velocidade.

O ritmo de expansão da malha viária não tem acompanhado o crescimento da frota. Nos últimos dez anos, a quantidade de veículos no município aumentou 25%, enquanto a infra-estrutura viária, hoje com 17 mil quilômetros de extensão, cresceu pouco menos de 6%. Para garantir maior agilidade aos ônibus, é inevitável tomar parte do espaço disponível aos carros para a criação de novos corredores exclusivos e vias preferenciais. “A população só deixará o automóvel quando o ônibus for mais rápido e oferecer conforto aos usuários”, explica o consultor Paulo Sérgio Custódio.

Com experiência internacional, Custódio ajudou a implantar o projeto Transmilênio em Bogotá (Colômbia), sistema de transporte com mais de 84 quilômetros de corredores exclusivos de ônibus, considerado um projeto exemplar. Concebido entre 1998 e 2000, o Transmilênio atende cerca de 1,5 milhão de colombianos e possui corredores de alto desempenho, que permitem ultrapassagens. Com capacidade para transportar mais de 45 mil passageiros por hora, sua velocidade média é de 27 quilômetros por hora.

O projeto do Transmilênio teve como inspiração a rede de transporte coletivo de Curitiba, cuja estrutura começou a ser criada na década de 70. Segundo Henrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá, a decisão de construir um sistema massivo de transporte por ônibus levou em conta, principalmente, questões orçamentárias. Os recursos necessários para a construção de um metrô de 17 quilômetros de extensão davam para construir 388 quilômetros de vias segregadas para ônibus, mais a melhoria do espaço urbano ao longo dos corredores.

“Em São Paulo, todas as expectativas repousam sobre o Metrô, mas os usuários precisam chegar até as estações de alguma forma. Um corredor de ônibus de alto desempenho pode ser tão eficiente e confiável como um trem”, comenta Custódio. O consultor também lembra que um quarto do território paulistano é coberto por linhas de ônibus, enquanto os 61 quilômetros de Metrô cobrem uma área inferior a meio ponto porcentual.

Durante a gestão de Marta Suplicy (PT), a prefeitura de São Paulo lançou a meta de implantar 325 quilômetros de corredores de ônibus exclusivos até 2008. Hoje, a cidade conta com cerca de 111 quilômetros de vias segregadas para ônibus. A maioria delas não permite ultrapassagens, e a velocidade média dos veículos é de 16,5 quilômetros por hora. O governo estadual incluiu em seu plano estratégico (Pitu 2020) a meta de 560 quilômetros de corredores na região metropolitana. Recentemente, Kassab anunciou a construção de outros dois corredores, com extensão total de 28 quilômetros, ao custo de 462,5 milhões de reais.

Proibição do estacionamento nas ruas
Ponto raramente mencionado no discurso dos gestores públicos, os estacionamentos em vias públicas têm um peso nada desprezível nos congestionamentos. O espaço ocupado pelos carros parados poderia permitir a circulação de outros veículos ou mesmo a delimitação de vias preferenciais para a passagem de ônibus. Essa é a razão que levou algumas capitais européias, a exemplo de Londres, a proibir o estacionamento diante das calçadas em extensas áreas, em geral no centro.

Mais do que uma medida para garantir a fluidez do tráfego, as ações visam desestimular o uso do automóvel, já que costumam vir associadas a um aumento das tarifas de estacionamento.

“Precisamos dar um destino mais nobre para as ruas, que é um bem público. Em vez de automóveis parados, é melhor reservar o espaço para os ônibus circularem com rapidez. Se o estacionamento na avenida Paulista é caro, é possível ir de Metrô”, diz o engenheiro Eric Ferreira, coordenador do Instituto de Energia e Meio Ambiente, uma ONG dedicada à mobilidade urbana. Como contrapartida, Ferreira defende a construção de bolsões de estacionamento próximos a terminais de ônibus, estações de trem e de Metrô.

Ferreira não é o único a encampar a tese. Em 2007, o vereador Ricardo Teixeira (PSDB) conseguiu aprovar na Câmara Municipal de São Paulo uma lei que proibia o estacionamento nas ruas do chamado centro expandido, região delimitada pelos rios Tietê e Pinheiros, entre o bairro da Lapa e o rio Aricanduva.

Muitos comerciantes atacaram a iniciativa, temerosos de perder clientes. O prefeito vetou o projeto. Kassab argumentou que as 40 mil vagas em estacionamentos na região não seriam suficientes para absorver a demanda. Na quinta-feira 13, porém, o secretário municipal dos Transportes, Alexandre de Moraes, anunciou que a prefeitura pretende proibir os carros de estacionar em avenidas e ruas movimentadas.

O autor do projeto, que trabalhou por mais de 20 anos na Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), pretende reapresentá-lo aos vereadores paulistanos na próxima semana.

Desta vez, a lei permite o estacionamento nos horários de menor tráfego de veículos, das 10 às 17 horas. O novo projeto, contudo, traz outras proposições, como a ampliação do rodízio, de duas para quatro placas por dia, restrições à circulação de caminhões durante o dia e fixação de horários para carga e descarga.

“Este pacote deve dar um fôlego para a cidade investir em transporte de massas nos próximos anos. Só não podemos cruzar os braços e ter essa chance desperdiçada, como aconteceu com o rodízio”, justifica Teixeira.

Em 1997, quando o rodízio municipal de veículos começou a vigorar, a frota da cidade era de 4,8 milhões de automóveis. Na época, cerca de 1 milhão de veículos passaram a ser impedidos de circular nos horários de pico. Mas o aumento da frota já superou o benefício inicial.

Pedágio no centro da cidade
O pedágio urbano é, talvez, a medida mais polêmica. Os defensores argumentam que o mecanismo poderá reduzir o número de veículos no centro da cidade e gerar recursos para investir em transporte coletivo. Os opositores criticam a falta de alternativas de transporte e o fato de pesar mais para os de menor renda.

Londres, Oslo, Estocolmo e Cingapura já adotaram o mecanismo. Na capital da Inglaterra, os motoristas pagam 8 libras para entrar no centro da cidade. Ônibus, táxis e motos estão isentos da cobrança. Os automóveis pagam de 1 a 2 euros para entrar no centro da capital sueca, dependendo da hora do dia.

Num debate realizado em julho de 2007, na Austrália, o secretário-geral do Fórum Internacional do Transporte, Jack Short, apresentou os avanços obtidos nessas capitais. Londres registrou queda de 30% na circulação de carros no centro. As viagens de ônibus e bicicletas aumentaram 20%. E os atrasos atribuídos aos congestionamentos caíram 30%. Em Estocolmo, o fluxo de carros reduziu 22% no período de testes. Metade dos motoristas que desistiram de circular pelo centro passou a utilizar transporte coletivo. Nos dois meses iniciais, a maioria da população achou a solução uma má idéia. Depois, a relação se inverteu.

O urbanista Cândido Malta acredita que o pedágio em São Paulo contribuirá para melhorar a infra-estrutura de transportes. “O Plano Integrado de Transporte Urbano (Pitu) indica a necessidade de se construirem mais 160 quilômetros de Metrô até 2025. O problema é o custo, cerca de 100 milhões de dólares por quilômetro”, explica. “Se os veículos pagassem 1 dólar por dia para circular no centro, poderíamos utilizar o dinheiro para cumprir essa meta em 20 anos. Se a taxa fosse de 2 dólares, tese que eu defendo, o tempo seria reduzido pela metade.”

Kassab rejeitou a possibilidade de a Prefeitura adotar a medida durante sua gestão. Conta com o apoio do urbanista Jorge Wilheim, ex-secretário municipal de Planejamento Urbano na gestão de Marta Suplicy (PT). “A maioria das viagens se dá dentro do centro expandido e os congestionamentos mais graves acontecem nas marginais. É mais fácil taxar todos os veículos. Mas não acho justo tomar essa medida antes de oferecer alternativa de transporte aceitável”, diz Wilheim (leia o artigo). Atualmente, o Metrô paulistano tem 55 estações, 61 quilômetros de extensão e transporta 3 milhões de passageiros por dia. O plano do governo do estado é adicionar 31 quilômetros de trilhos até 2012.

Tarifa zero no transporte coletivo
Com o aval da então prefeita Luiza Erundina (1989-1993), que decidiu encampar a proposta no início da década de 90, o secretário municipal dos Transportes, Lucio Gregori, tratou de apresentar o projeto de tarifa zero para os ônibus à bancada petista da Câmara. O balde de água fria foi proporcional à empolgação inicial. Vários vereadores do partido consideraram a iniciativa inviável. O próprio Lula foi contra, dizendo que o “trabalhador deveria ganhar o suficiente para pagar pelo transporte”. Deixado de lado, o projeto de Gregori seria adotado como bandeira pelos jovens que há alguns anos criaram o Movimento Passe Livre, que inicialmente defendia o transporte gratuito apenas para os estudantes.

A partir de 2004, esse movimento ganhou visibilidade nacional por conta de campanhas contra o reajuste das tarifas, em cidades como Florianópolis e Salvador. “Hoje, percebemos que o movimento estava equivocado. É preciso que haja passe livre para toda a população. Quem deve arcar com o custo do transporte é a sociedade como um todo”, afirma o estudante Lucas Monteiro, um dos membros do MPL, que já convidou Gregori para dar palestras em algumas capitais do País.

Na avaliação de Gregori, a tarifa zero é um diferencial imbatível para fazer os paulistanos abandonarem os carros e migrarem para o transporte coletivo. “A intenção da prefeitura era aumentar o IPTU nas áreas mais valorizadas da cidade para bancar o custo”, explica. “Na França, por exemplo, um terço do valor da tarifa é pago pelo setor produtivo, um terço pelo usuário e outro pelo governo. Por que não pensamos em algo assim?”

Em Helsinque, na Finlândia, e nas cidades suecas de Estocolmo e Gotemburgo, também há grupos que lutam pela gratuidade do transporte. Como estratégia de pressão, o Movimento Planka, por exemplo, criou um fundo para bancar as multas dos associados que são flagrados pelas autoridades suecas circulando em ônibus sem pagar a tarifa.

Entre os especialistas brasileiros, a rejeição à proposta é grande. “Não há dúvidas de que o preço da tarifa precisa ser barateado, com uma política de subsídios e de incentivos fiscais. Mas a gratuidade iria onerar demais o Estado e estimular o uso pouco racional do transporte. É melhor cobrar pouco, mas cobrar”, comenta Marcos Bicalho, diretor-superintendente da NTU. Dos 308,5 milhões de reais gastos com o sistema de ônibus em São Paulo no mês de janeiro, apenas 39 milhões de reais foram bancados pela prefeitura. O restante foi pago pelos usuários.

Limite ao licenciamento de carros
Talvez a solução mais drástica para conter a proliferação dos carros tenha sido a adotada em Cingapura. Além de criar elevadas tarifas para a aquisição de veículos, o governo instituiu o Certificado de Propriedade (COE, na sigla em inglês). Trata-se de leilão de licenças que limita o número de automóveis na cidade-Estado, uma ilha com pouco mais de 4,6 milhões de habitantes. O custo de cada licença pode chegar a algo em torno de 21 mil reais. Hoje, há cerca de 851 mil veículos na ilha. Na última década, a frota cresceu menos de 2,5% ao ano.

“O sistema é semelhante ao aplicado aos taxistas do Brasil, que possuem um número limitado de placas para rodar”, explica Eric Ferreira. Xangai, a maior cidade da China, com 17 milhões de habitantes, adotou um sistema semelhante. Lá, as licenças para comprar automóveis podem custar mais de 5 mil dólares.

“Trata-se de uma medida muito dura, mas necessária. Em Xangai, um trajeto de 15 quilômetros pode levar mais de três horas e meia”, comenta o engenheiro Paulo Sérgio Custódio, hoje em Pequim, na China, onde dá consultoria em projetos locais. “Espero que São Paulo não precise adotar uma medida tão rígida como essa, mas o agravamento dos congestionamentos me deixa receoso de que isso será necessário num futuro muito próximo.”
 

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