“Desigualtômetro” mostra que nem sempre periferia tem os piores índices

Por Renato Cymbalista – publicada no blog Esquina Net – Estadão

No final de outubro foi divulgado pela Rede Nossa São Paulo o Mapa da Desigualdade de 2017. Trata-se de um processamento de dados sobre as condições sociais e econômicas das diversas regiões da cidade. A Nossa São Paulo vem fazendo isso já há alguns anos. Não são produzidos novos dados, são utilizadas as bases existentes em diversos órgãos. 

A originalidade desse método é a produção do chamado “Desigualtômetro”, um indicador que mostra a distância entre os distritos mais bem posicionados e aqueles em situação mais precária. Assim, por exemplo, percebemos que um habitante do distrito da Sé tem 116.1 vezes mais acesso acentros culturais e espaços de cultura do que um morador do Grajaú. A renda média de um morador do Campo Belo é 7,83 vezes maior do que a remuneração média de um morador de Marsilac.

O retrato do Mapa é o já esperado: São Paulo é uma cidade brutalmente desigual. E é esta a veiculação do Mapa na mídia: “Diferença de salários e expectativa de vida são grandes na capital” (Rede Globo); “Morador dos Jardins vive 24 anos a mais do que o do Jardim Ângela” (Estadão), "Jovem tem 17 vezes mais chances de morrer no Brás que na Vila Matilde" (Folha). As entrevistas dadas pelos responsáveis pela produção do Mapa reiteram esse cenário. 

Está tudo certo com essas chamadas, é mesmo importante atentarmos para a iniqüidade reinante no território paulistano, e o Mapa é essencialmente um instrumento de denúncia. Mas ele permite mais do que isso. Como todos os urbanistas atuantes em São Paulo, sou de certa forma um profissional da desigualdade, e acabo buscando outras coisas no Mapa, algo mais surpreendente.

Por exemplo, eu não esperava que em cinco distritos da cidade a renda das mulheres seria maior do que a dos homens.  Mas é. As mulheres ganham mais no Butantã, Jaguara, Jardim Helena, Lajeado e Guaianazes. Fico muito curioso para saber porque isso acontece. Minha primeira hipótese é que nesses bairros o desemprego masculino é muito maior do que o feminino. Mas no mapa que mostra o desemprego isso não acontece, o desemprego feminino é 2,3% a 3,2% maior do que entre os homens nessas regiões. E são bairros muito diferentes: o Butantã tem um índice de Vulnerabilidade muito baixo, enquanto Jardim Helena e Lajeado têm índices muito altos. Fica a pergunta.

Outra surpresa. Você sabe qual o local da cidade com o menor tempo de espera para ser atendimento por um clínico geral? Não é Moema nem a Sé, é Jaguara, na periferia Oeste. E o pior não é o Jardim Ângela nem Marsilac, é o bairro bem central da Liberdade, onde se espera 76 dias para ser atendido. O desigualtômetro é bem alto – 25,33 vezes – mas a periferia vence de lavada do Centro, ao contrário do que imaginávamos. Depois de Jaguara, os melhores números são: Jardim Ângela, Raposo Tavares, Jaguaré, Jardim São Luís. Não quero dizer com isso que a vida nesses bairros é melhor do que no Centro, mas há algo interessante nesses lugares, tenho vontade de ir lá para entender como os postos de saúde e hospitais estão dando conta da demanda.

No Jardim Ângela uma mulher negra tem 3 vezes mais chance de engravidar na adolescência do que uma mulher branca. É uma desigualdade esperada. Mas em 29 distritos as mulheres negras têm menos chance de engravidar na adolescência do que as não negras. Eu não esperava um indicador como esse, e gostaria muito de entender porque isso acontece.

O distrito mais bem servido por creches é Guaianazes, onde 98,6% da demanda por creches é atendida. Depois vêm Cidade Tiradentes e Lajeado, todos no fundão da Zona Leste. Os piores níveis de atendimento acontecem na Vila Andrade, onde se situa Paraisópolis, e também na Sé.

Os distritos com mais homicídios são Brás e República. Isso é um dado novo, pois até há alguns anos atrás os distritos mais violentos estavam na periferia, com destaque histórico para o Jardim Ângela. Esse distrito continua violento, mas algo parece ter acontecido no Brás e na República.

É interessante olhar para a série histórica dos indicadores. A visão que propaga que a cidade está se deteriorando rumo ao caos não se confirma, existem aspectos melhorando e outros piorando, mas o balanço é ligeiramente positivo. Mais bairros possuíam em 2016 espaços culturais, cinemas, teatros e leitos hospitalares em relação a 2013. Por outro lado, mais bairros não possuem telecentros nem unidades básicas de saúde. 16 indicadores de desigualdade melhoraram nesse período, enquanto 12 pioraram. Os dados sobre homicídios mostram uma aproximação entre os extremos, indicando que as periferias melhoraram e o centro piorou.

Não quero pintar uma imagem de sonhos aqui. Todos sabemos que São Paulo é insuportavelmente desigual, e com desigualdades muito persistentes. Por outro lado, olhar para os pedaços do mapa onde essa imagem é desafiada pode nos levar mais longe do que a simples denúncia: o que faz o sistema de saúde funcionar bem em um bairro específico, e mal em outro, na mesma faixa de renda? O que faz as mulheres negras serem menos vulneráveis em alguns pontos da cidade, não necessariamente nos bairros mais ricos? O que fez os homicídios piorarem em alguns bairros centrais? Por que as mulheres ganham mais do que os homens em alguns pedacinhos da cidade?

É necessário ir além dos comentários de sempre, pois este Mapa da Desigualdade de 2017 nos permite formular uma série de perguntas inesperadas.

Renato Cymbalista é arquiteto e urbanista e professor da FAU-USP. É integrante de OUTROS – o Laboratório para Outros Urbanismos (FAU-USP) e coordena o grupo de pesquisa Lugares de Memória e Consciência (USP/CNPq)

Matéria publicada no blog Esquina Net – Estadão.

 

 

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