“Autocrítica”, por Chico Whitaker

 

Por Chico Whitaker

Em 85/88 vivi uma grande experiência política: o “Plenário pró Participação Popular na Constituinte”, uma mobilização social que levou ao Congresso 122 “Emendas Populares”, conformes ao Regimento Interno da Constituinte, com mais de 12 milhões de assinaturas. 
Uma das conquistas: uma pincelada de democracia semidireta em nosso país. Segundo o parágrafo único do artigo 1º. da Constituição, “todo o poder emana do povo, que o exerce através de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. O “diretamente” referia-se à Iniciativa Popular de Lei, ao Plebiscito e ao Referendo, mas seu uso foi também, imediatamente, limitado:  exigências difíceis para os projetos de Iniciativa Popular e competência exclusiva do Congresso para “autorizar referendo e convocar plebiscito”. Explica-se: democracia muitas vezes dá medo aos detentores do Poder.  

O “Plenário”, que lutou por esse pequeno avanço, se reunia na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito de São Francisco, oferecida pelo Centro Acadêmico XI de Agosto. Seu Presidente, naquela ocasião: Fernando Haddad. 

Pensei em ajudar como Vereador, em 1989, no avanço da participação popular ao nível municipal. Conseguimos fixar, na Lei Orgânica, que “o poder Municipal pertence ao povo”, em vez de somente dele “emanar”. E abrimos, no artigo 10º, uma porta para isso: “O Legislativo e o Executivo tomarão a iniciativa de propor a convocação de plebiscitos antes de proceder à discussão e aprovação de obras de valor elevado ou que tenham significativo impacto ambiental, segundo estabelecido em lei”. 

Era um tímido passo positivo à frente. Mas ele continha problemas, pela imprecisão dos conceitos. 

O que é uma obra de “valor elevado” que precisa ser aprovada pela população? O poder público está obrigado a realizar obras custosas: pensemos no metro ou no saneamento básico. Em outros países há movimentos sociais voltados especificamente para impedir “grandes obras inúteis”, porque resultam da ganância de empresas em sua busca de lucros ou da submissão de autoridades públicas à lógica das grandes obras-grandes comissões. É disto que cogitavam os constituintes municipais? 

Por outro lado, toda grande obra tem “impacto ambiental”. Mas quando ela é negativa para a vida na cidade? Pode ser algo necessário para se enfrentar grandes problemas. Ou pode ser somente um bom “negócio” para os que a propõem ou para os que tem que licenciá-las…

A frase “segundo estabelecido em lei” permite usualmente que um princípio – como o da consulta ao povo no caso de obras duvidosas – fique assegurado na Lei. No caso de Leis mais complexas, como as Constituições, é impossível, na dinâmica de sua discussão e aprovação, aprofundar e precisar todos os conceitos. Empurra-se então para adiante a solução da imprecisão. Mas no nosso caso criou-se o risco de jogar na lata do lixo todo um esforço de aperfeiçoamento democrático. 

Tentei regulamentar o artigo 10º em 1.983. O Prefeito Maluf encontrou justificativas para vetá-la, depois de desrespeitar todos os prazos legais para isso. E tive o desprazer, já fora da Câmara, de ver a bancada do meu Partido aceitar o veto – aliás também desrespeitando todos os prazos legais.  

Outras tentativas de regulamentação tiveram o mesmo destino. E agora o atual Prefeito está considerando necessário vetar uma nova regulamentação, aprovada na Câmara. Só que esta já não foi proposta por um ou alguns vereadores mas foi longamente elaborada, com a participação de vários movimentos sociais, por uma “Frente parlamentar de implementação da democracia direta”. E ela chegou ao Executivo com uma longa lista de apoiadores. Um veto seria portanto muito mais grave. E o Prefeito, que participou, quando jovem, da luta nacional pela participação popular na Constituinte, correria o risco de manchar sua história. 

Não seria o caso de buscar uma solução usando outra imprecisão de nossas leis, relativamente aos prazos para vetar ou aceitar vetos? Talvez o problema tenha amadurecido o suficiente para que um veto ou outra solução sejam postergados o tempo necessário a que todos atores implicados se lancem num esforço especial, tomando como ponto de partida uma conceituação mais precisa do que seriam “obras de valor elevado – ou mesmo de menor valor – desnecessárias” ou com “impacto negativo na vida social e no meio ambiente”. E que exigiriam portanto uma aprovação popular, para evitar esses impactos, ou para que não se joguem fora recursos escassos, tão necessários para tantas outras necessidades, ou para fechar as portas para a corrupção. 

Nota complementar:

Eu ontem terminei e divulguei entre amigos este texto mas esta manhã fiquei sabendo, pelos jornais, que o Prefeito Haddad vetou o projeto em questão, ao que tudo indica para não desrespeitar o prazo que tinha para isso ou para sancioná-lo. Os jornais dizem também que ele enviou ou enviará à Câmara um Projeto de Lei que pretenderia dar mais “segurança jurídica” a decisões implicando a realização de plebiscitos sobre as obras consideradas em projeto que regulamente o artigo 10º. da Lei Orgânica. 

Não tenho conhecimento do teor desse projeto para comentá-lo. Mas se o que ele pretende é que a Câmara retome a discussão do assunto, agora a partir do projeto que ele lhe enviou, nada impede que seja feito também, ou paralelamente, o esforço que eu propunha no final deste artigo, com vistas a precisar mais os conceitos. Nas conversas de que já pude participar a esse respeito constatei que, sem essa maior precisão, o diálogo tende a ser de surdos. E este é o pior caminho para quem pretenda fazer avançar a democracia. 

Num tal esforço seria necessário contar com a participação também dos técnicos da Prefeitura que elaboraram o novo projeto enviado. Sempre que não venha a acontecer o que constitui a maior queixa feita pelos que conduziram o longo processo que levou ao projeto de lei ora vetado: a ausência, nesse processo, dos órgãos da Prefeitura que se dispuseram a ajudar, quando ele começou a ser elaborado. 

E eu iria ainda mais longe: deveria ser convidada a participar também o Sinduscon-SP, que possivelmente, por meio de uma nota recém-publicada, levantando a questão da insegurança jurídica, convenceu o Prefeito a decidir pelo veto. Para que não pairem dúvidas sobre seus reais interesses, na medida em que as empreiteiras se tornaram, por força da Lava-Jato, organizações sempre suspeitas de terem interesses menos elogiosos. 

21 de julho de 2016

 

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